26/11/2012

Saudação à criação da Revista Científica da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique)


A comunicação científica e a questão da investigação científica e das comunidades científicas para a consolidação da ciência no País  

Francisco das Chagas de Souza
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, Brasil

Palestra proferida na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), por ocasião do lançamento da Revista Científica da UEM, em 23 de novembro de 2012, em Maputo, Moçambique.


Permitam-me iniciar  com um conceito amplo de ciência. Para mim, ciência, para além de um estágio avançado da construção do  conhecimento humano, o último estágio da filosofia, como diz Cassirer em seu Ensaio sobre o homem, trata-se de um bem econômico vital de uso local, entendido esse ambiente local como um país, com o propósito de dar suporte ao bem estar dos povos que constituem as nações e que, simultaneamente, serve de base para a competição econômica internacional.

Diferentemente dos insumos naturais que se utiliza em estado de extração numa economia primária agropastoril, cujo ciclo produtivo condiciona o homem ao seu ritmo natural ou num estágio de transformação numa economia secundária industrial, em que o homem condiciona a natureza, submetendo-a ao seu projeto, a ciência exige do homem que construa a teoria que lhe levará a submeter a teste de veracidade o objeto eleito para exame. Essa noção de três tempos distintos, historicamente constituídos e atualmente em regime de convivência dado pelas circunstâncias locais de comunidades singulares, formulada pelo filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, aponta para o fato de que se pode pensar a ciência como correlata ou descendente de processos complexos de vida e existência assegurados por uma boa educação de base, ou melhor, por processos através dos quais a coletividade se concerta no sentido de reunir os meios materiais constitutivos das condições que contém todos os requisitos para a preparação cotidiana  de um estado de aprendizagem capaz de levar as pessoas a viver um sentimento de vivacidade e independência intelectual.

Em minha concepção, portanto, a ciência não pode ser tomada como uma erupção natural, um simples fenômeno volitivo ou uma explosão metafísica. Ela é parte da vontade de poder, decorrente do desenrolar de nossa vida, que nos leva à produção da realidade como o resultado de nossa comunicação como seres cujas concretudes se constituem linguageiramente, dialogicamente, comandadas pela pedagogia da existência. Por isso mesmo, por essa mesma fonte constitutiva, a ciência pode ser tomada como mais um dos espelhos a refletir os desejos que formulamos pelo sentimento de que somos descendência que gera descendência e, assim, que somos capazes de construir todos os possíveis futuros que ousamos desejar. A isso somos  premidos pela visão de que os mundos das nossas vivências (Schutz; Luckmann, 2003), quando nos vemos como coletivos individualizados ou como indivíduos singulares, não podem desconhecer os mundos concretos de nossos irmãos humanos igualmente como coletivos ou indivíduos que, por seus ambientes, mais áridos, mais tropicais, mais temperados ou mais primitivos ou cultivados  nos oferecem a possibilidade de cooperar andando juntos, ou cooperar em conflito, numa compreensão que partilhando com Norbert Elias, poderemos chamar de processo civilizador. É, justamente, nesse sentido, que não enxergo hoje a ciência que, destinada à produção da  riqueza econômica, moral e política para cada uma de nossas nações, estados, povos,  não aplique os seus conhecimentos operativos próprios, os procedimentos que os cientistas vêm construindo sempre, e sempre mutáveis, para compreender como as realidades locais, cooperando com os contextos externos são parte de um tecido global, chamado existência humana.  Essa ciência, então, no plano local aparentemente precisa partir de dois eixos:

a)      Uma Política nacional de CT e inovação, que aponte para as metas desejáveis de desenvolvimento humano e crescimento econômico. Previsão e provisão  de financiamento sustentável em longo, médio e curto prazos, diálogo internacional com as fontes de apoio e com as matrizes científicas mais avançadas, em interação e interlocução contínuas.

b)      A constituição, apoio e consolidação de comunidade científica capaz de mapear as tendências adequadas  e atuar visando à inserção internacional do país sem descurar da resolução dos problemas materiais nacionais em que o conhecimento científico de base local e o conhecimento internacional absorvido e adaptado possam contribuir para uma ascensão sustentável aos melhores padrões de vida que a sociedade local queira desejar e conquistar.

Mas essa comunidade científica é constituída no seio da sociedade, como uma das forças estruturantes  do estado para atuar visando o bem das nações e dos povos que integram este estado assentadas em seu território e não para dar suporte às outras forças do estado com poder  intervencionista cuja vontade supera a vontade da sociedade que a constitui, remunera e financia as suas atividades. A ela cabem responsabilidades que são determinadas pela sociedade que a estabelece, mas que, em geral, olhando para as experiências exitosas de outras sociedades, e atuando como elemento de diálogo, provavelmente se dedicará a objetivos como:   

a)      Propor estratégias apropriadas para a formulação da Política nacional de CT e inovação, interagindo com o estado e com o empresariado no sentido de produzir a reflexão sobre as convergências dos vários interesses que podem culminar com a inclusão de todos os membros da sociedade nos benefícios advindos da transformação do conhecimento científico em renda econômica e bem estar material.

b)      Pensar e propor as estratégias de articulação da execução da Política nacional de CT e inovação com uma Política nacional de educação e uma política nacional de ação universitária, voltada à geração do conhecimento científico e tecnológico.

c)      Buscar os meios concretos e com o mais amplo apoio social visando implantar, consolidar e inovar a estrutura universitária do país tendo em vista ser o ensino superior e, especialmente, a universidade,  um lugar de exercício dos papéis de:  guardiã das tradições filosóficas e culturais do país;  formação de recursos humanos para atuação no exercício das profissões oficiais resguardadas em corporações próprias;  formulação e execução de estratégias de desenvolvimento de ciência, tecnologia, inovação e experimentação e produção de protótipos industriais, etc.;  prestação de serviços, estendendo seu conhecimento a solução de problemas manifestados em pequenas vilas, comunidades ou povoados, dentre outros.  
d)      Organizar o processo de produção do conhecimento científico e executá-lo como parte da operacionalização dos papéis  já referidos nos itens “c” e “d” acima como atributos da universidade, assim como de institutos de pesquisas científicas estatais ou privados.

e)      Difundir nacional e internacionalmente o conhecimento científico produzido, fomentar o patenteamento da tecnologia e inovação de valor econômico, colaborando para o país interagir em um mercado internacional e estender o conhecimento de tecnologia social para as populações locais.

Esse último objetivo apontado, particularizando a difusão nacional e internacional do conhecimento científico produzido, implica na construção de um forte sistema nacional de ICT a congregar instituições e estratégias com alguns componentes básicos, de custo alto, mas de retorno econômico seguro e vantajoso.  

A experiência internacional nesse sentido vem se consolidando nos dois últimos séculos nos países economicamente desenvolvidos e, com o advento das recentes tecnologias de comunicação da informação, especialmente da Internet, vem se acelerando nos últimos trinta anos nos países em desenvolvimento, particularmente, nesses denominados de economia emergente, dentre os quais se podem distinguir os BRIC (Brasil, Índia, China e África do Sul). 

Esses componentes básicos que favorecem a difusão nacional e internacional do conhecimento científico ficam claramente perceptíveis no segundo Relatório quinquenal da UNESCO sobre a Ciência, editado em 2010, com uma profunda análise do ambiente internacional, consolidando dados do período de 2006 a 2010.

Eles envolvem, dentre outros, 
a)      A Pós-graduação (+ graduação + educação secundária + primária)
b)      O evento científico
c)      O periódico científico

Sobre o periódico científico, pode-se afirmar que é o centro de todo o processo chamado  comunicação científica. Sem a sua criação, a ciência como um bem econômico vital de uso local não teria atingido a culminância de um grande tecido internacional, a correlacionar com menor ou maior intensidade o conjunto das nações, seus países e seus territórios, num progressivo enredamento.  

Ao mesmo tempo, como qualquer outro bem que adquire contornos econômicos concorrenciais, a comunicação científica pode ser capaz de distinguir o que é local, de um país e de uma região e, com isso, demonstrar o valor desse bem local no diálogo mundial.

Para exemplificar, com o material disposto no já mencionado Relatório quinquenal da UNESCO sobre a Ciência, de 2010, podemos ver a partir dos dados do Science Citation Index (SCI)  ali examinados, quais os assuntos que predominam nos países ou regiões, os idiomas predominantes na produção da ciência, a interação entre grupos de pesquisa e a colaboração internacional, o crescimento do número de artigos científicos publicados  e, com isso, prospectar as tendências que certos segmentos temáticos de interesse da comunidade científica, ainda que partindo do local, apontam para a formação de núcleos de uma comunidade científica internacional.

Nesse sentido, a Revista Científica da Universidade Eduardo Mondlane, surge como parte de um movimento mundial de apropriação de novos recursos de edição e distribuição do conhecimento inicialmente produzido pela comunidade científica de Moçambique, mas que, à semelhança das experiências que vemos se desenvolver no Brasil e outros países, será mais um dos espaços de integração dos povos moçambicanos com todas as outras nações que, pela Ciência, se aliam no esforço de fazer a realidade vivencial humana cada vez melhor. 

Contudo, como todo empreendimento humano, uma publicação científica contém perigos inerentes ao próprio processo que atinge os periódicos locais e internacionais, dos quais o mais insidioso é o plágio.
A esse propósito, com o título “Epidemia de fraude na ciência?”, o site do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à pesquisa (Brasil) [http://www.confap.org.br/epidemia-de-fraude-na-ciencia/] , noticiou em 8/10/2012, que:

O fantasma da fraude voltou a assombrar a comunidade científica nesta semana. Desta vez, não foi um caso específico.
Uma análise robusta da literatura biomédica mostrou que a má conduta nesse meio é mais comum do que se imaginava – ou se fazia crer.    
Em estudo publicado na segunda-feira (01/10/2012) na revista PNAS [Proceedings of the National Academy of Sciences], pesquisadores dos Estados Unidos apresentam os resultados de uma revisão detalhada de 2.047 artigos da área biomédica e de ciências da vida – indexados na base PubMed – que foram ‘despublicados’ entre 1977 até maio deste ano [2012]. [...]
Geralmente as despublicações são atribuídas a erros não premeditados. Nesse caso, no entanto, estiveram associadas, sobretudo, a desvios éticos (67,4%), entre eles fraude ou suspeita de fraude (43,4%), publicação duplicada (14,2%) e plágio (9,8%). Os erros em si não responderam nem por um quarto das ocorrências (21,3%)”.

Esse perigo atinge aos editores científicos, avaliadores/revisores, instituição que empresta sua marca ao periódico. Isso, mais que um aspecto estritamente moral é resquício daquele componente da conduta humana que tanto Aristóteles, no seu texto Ética a Nicômaco, quanto Freud, em seu texto O mal estar na cultura, se referem, ou seja,
os adultos normalmente apenas se permitem fazer o mal que lhes promete vantagens quando estão seguros de que a autoridade nada saiba a respeito ou que nada lhes poderá fazer, e o seu único medo é de serem descobertos”. (FREUD, p. 147).

Tal situação é provocada pela competição que tem seus componentes econômicos evidentes, dado que o montante mundial de investimento em pesquisa e desenvolvimento ultrapassa anualmente a cifra de hum trilhão de dólares. Quanto à comunicação científica, há um  mercado comercial de revistas científicas que nem sempre vem em benefício direto aos autores e às universidades que os empregam, especialmente quando se trata da cedência de sua produção às editoras comerciais. De fato, trata-se de um mercado composto por: 1 - editoras comerciais, 2 - sociedades científicas e 3 – editores independentes aí incluídas as universidades. As editoras comerciais movimentam números astronômicos. Somente para exemplificar, com dados tratados por Guanaes e Guimarães (2012):
Em 2010, a Elsevier registrou um lucro de 1,16 bilhão de dólares, numa receita de 3,23 bilhões de dólares, o que equivale a 36% de margem de lucro [...]. Os conglomerados editoriais Elsevier, Springer e Blackwell detêm 42% do mercado de publicações científicas.
Esse mercado está estimado em US$ 7 bilhões anuais, considerando apenas o que é editado para pesquisa em ciência, tecnologia e medicina no idioma inglês. (Guanaes e Guimarães, 2012).
Cabe considerar que o insumo básico do produto vendido por essas editoras é composto por
2,5 milhões de artigos científicos avaliados por pares e cedidos por seus autores, sem qualquer pagamento [...]. Essas editoras publicam esses milhões de artigos anualmente em 25 mil periódicos científicos [dos quais e Elsevier é titular de mais de 2.000 títulos].  (Guanaes e Guimarães, 2012).

Para proteger a qualidade de sua produção contra o plágio a comunidade científica já desenvolveu vários recursos que estão à disposição dos editores.

Para se proteger da exploração econômica de seu trabalho intelectual e proteger as suas universidades, sobretudo as mantidas com recursos públicos, a comunidade tem buscado meios, através do movimento em torno do acesso livre ao conhecimento publicado.  E novamente poderá buscar sensibilizar os fundos públicos para assegurar que a sociedade possa aceder diretamente a essa produção. No caso brasileiro, o CNPq e a CAPES têm colaborado continuamente nesse sentido. Até [o último] 20 de novembro, ficaram abertas as inscrições para uma chamada pública cujo  objetivo foi incentivar a editoração e publicação de periódicos científicos em todas as áreas do conhecimento no país [...], dando prioridade de apoio às revistas divulgadas por meio eletrônico, na internet, em modo de acesso aberto, ou nos formatos impresso e eletrônico simultaneamente. O montante de recursos disponíveis é de R$ 6 milhões [para aplicação em 2013]. (CNPq. Assessoria...)

Claro que esse tema é muito vasto, mas preciso, pelo tempo que me foi dado, encerrar esta fala que apenas abriu  algumas questões, desejando o melhor sucesso à comunidade científica de Moçambique, à Universidade Eduardo Mondlane, bem como aos editores da Revista Científica da UEM.

Muito obrigado!  


Fontes referidas:
Aristóteles (383-322 a. C.). Ética a Nicômaco.  In: Aristóteles. Vida e obra. Trad. e notas de Pinharanda Gomes. São Paulo: Círculo do Livro, 1996.  p. 117-320.

Cassirer, Ernst. Ensaio sobre o homem; introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 391 p.

CNPq. Assessoria de Comunicação Social. Publicações científicas recebem apoio financeiro. Disponível em: http://www.confap.org.br/publicacoes-cientificas-recebem-apoio-financeiro/. 29/10/2012.

Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Brasil). Disponível em: http://www.confap.org.br.
Elias, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. v. 1. 271p.
Elias, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v. 2. 307p.
Flusser, Vilém. Filosofia da caixa preta; ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. 108 p.
Flusser, Vilém. Pós-história; vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas cidades, 1983. 168 p.

Freud, Sigmund (1856-1939). O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011. 191 p.
Guanaes, Paulo Cezar Vieira;  Guimarães, Maria Cristina Soares.  Acesso livre: uma nova crise no horizonte? ComCiência, 10/06/2012. Disponível em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=79&id=971
Schutz, Alfred; Luckmann, Thomas. Las estructuras del mundo de la vida.   Trad. Néstor Miguez, 2003. 314 p.  
Unesco. Relatório UNESCO sobre ciência 2010; resumo executivo - O atual status da ciência em torno do mundo. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001898/189883por.pdf