A
comunicação científica e a questão da investigação científica e das comunidades
científicas para a consolidação da ciência no País
Francisco
das Chagas de Souza
Universidade
Federal de Santa Catarina
Florianópolis,
Brasil
Palestra proferida na Universidade Eduardo
Mondlane (UEM), por ocasião do lançamento da Revista Científica da UEM, em 23 de novembro de 2012, em Maputo,
Moçambique.
Permitam-me
iniciar com um conceito amplo de ciência.
Para mim, ciência, para além de um estágio avançado da construção do conhecimento humano, o último estágio da
filosofia, como diz Cassirer em seu Ensaio
sobre o homem, trata-se de um bem econômico vital de uso local, entendido
esse ambiente local como um país, com o propósito de dar suporte ao bem estar
dos povos que constituem as nações e que, simultaneamente, serve de base para a
competição econômica internacional.
Diferentemente
dos insumos naturais que se utiliza em estado de extração numa economia
primária agropastoril, cujo ciclo produtivo condiciona o homem ao seu ritmo natural
ou num estágio de transformação numa economia secundária industrial, em que o
homem condiciona a natureza, submetendo-a ao seu projeto, a ciência exige do
homem que construa a teoria que lhe levará a submeter a teste de veracidade o
objeto eleito para exame. Essa noção de três tempos distintos, historicamente
constituídos e atualmente em regime de convivência dado pelas circunstâncias
locais de comunidades singulares, formulada pelo filósofo tcheco-brasileiro Vilém
Flusser, aponta para o fato de que se pode pensar a ciência como correlata ou
descendente de processos complexos de vida e existência assegurados por uma boa
educação de base, ou melhor, por processos através dos quais a coletividade se
concerta no sentido de reunir os meios materiais constitutivos das condições
que contém todos os requisitos para a preparação cotidiana de um estado de aprendizagem capaz de levar as
pessoas a viver um sentimento de vivacidade e independência intelectual.
Em minha
concepção, portanto, a ciência não pode ser tomada como uma erupção natural, um
simples fenômeno volitivo ou uma explosão metafísica. Ela é parte da vontade de
poder, decorrente do desenrolar de nossa vida, que nos leva à produção da
realidade como o resultado de nossa comunicação como seres cujas concretudes se
constituem linguageiramente, dialogicamente, comandadas pela pedagogia da
existência. Por isso mesmo, por essa mesma fonte constitutiva, a ciência pode
ser tomada como mais um dos espelhos a refletir os desejos que formulamos pelo
sentimento de que somos descendência que gera descendência e, assim, que somos capazes
de construir todos os possíveis futuros que ousamos desejar. A isso somos premidos pela visão de que os mundos das
nossas vivências (Schutz; Luckmann, 2003), quando nos vemos como coletivos
individualizados ou como indivíduos singulares, não podem desconhecer os mundos
concretos de nossos irmãos humanos igualmente como coletivos ou indivíduos que,
por seus ambientes, mais áridos, mais tropicais, mais temperados ou mais
primitivos ou cultivados nos oferecem a
possibilidade de cooperar andando juntos, ou cooperar em conflito, numa
compreensão que partilhando com Norbert Elias, poderemos chamar de processo
civilizador. É, justamente, nesse sentido, que não enxergo hoje a ciência que, destinada
à produção da riqueza econômica, moral e
política para cada uma de nossas nações, estados, povos, não aplique os seus conhecimentos operativos
próprios, os procedimentos que os cientistas vêm construindo sempre, e sempre
mutáveis, para compreender como as realidades locais, cooperando com os
contextos externos são parte de um tecido global, chamado existência humana. Essa ciência, então, no plano local aparentemente
precisa partir de dois eixos:
a)
Uma Política nacional de CT e
inovação, que aponte
para as metas desejáveis de desenvolvimento humano e crescimento econômico.
Previsão e provisão de financiamento
sustentável em longo, médio e curto prazos, diálogo internacional com as fontes
de apoio e com as matrizes científicas mais avançadas, em interação e
interlocução contínuas.
b)
A constituição, apoio e consolidação
de comunidade científica capaz de mapear as tendências adequadas e atuar visando à inserção internacional do
país sem descurar da resolução dos problemas materiais nacionais em que o
conhecimento científico de base local e o conhecimento internacional absorvido
e adaptado possam contribuir para uma ascensão sustentável aos melhores padrões
de vida que a sociedade local queira desejar e conquistar.
Mas essa comunidade
científica é constituída no seio da sociedade, como uma das forças estruturantes do estado para atuar visando o bem das nações
e dos povos que integram este estado assentadas em seu território e não para
dar suporte às outras forças do estado com poder intervencionista cuja vontade supera a vontade
da sociedade que a constitui, remunera e financia as suas atividades. A ela cabem
responsabilidades que são determinadas pela sociedade que a estabelece, mas
que, em geral, olhando para as experiências exitosas de outras sociedades, e
atuando como elemento de diálogo, provavelmente se dedicará a objetivos como:
a)
Propor
estratégias apropriadas para a formulação da Política nacional de CT e
inovação, interagindo com o estado e com o empresariado no sentido de produzir
a reflexão sobre as convergências dos vários interesses que podem culminar com
a inclusão de todos os membros da sociedade nos benefícios advindos da
transformação do conhecimento científico em renda econômica e bem estar
material.
b)
Pensar
e propor as estratégias de articulação da execução da Política nacional de CT e
inovação com uma Política nacional de educação e uma política nacional de ação
universitária, voltada à geração do conhecimento científico e tecnológico.
c)
Buscar
os meios concretos e com o mais amplo apoio social visando implantar,
consolidar e inovar a estrutura universitária do país tendo em vista ser o
ensino superior e, especialmente, a universidade, um lugar de exercício dos papéis de: guardiã das tradições filosóficas e culturais
do país; formação de recursos humanos
para atuação no exercício das profissões oficiais resguardadas em corporações
próprias; formulação e execução de
estratégias de desenvolvimento de ciência, tecnologia, inovação e experimentação
e produção de protótipos industriais, etc.; prestação de serviços, estendendo seu
conhecimento a solução de problemas manifestados em pequenas vilas, comunidades
ou povoados, dentre outros.
d)
Organizar
o processo de produção do conhecimento científico e executá-lo como parte da
operacionalização dos papéis já
referidos nos itens “c” e “d” acima como atributos da universidade, assim como
de institutos de pesquisas científicas estatais ou privados.
e)
Difundir
nacional e internacionalmente o conhecimento científico produzido, fomentar o
patenteamento da tecnologia e inovação de valor econômico, colaborando para o
país interagir em um mercado internacional e estender o conhecimento de
tecnologia social para as populações locais.
Esse último
objetivo apontado, particularizando a difusão nacional e internacional do
conhecimento científico produzido, implica na construção de um forte sistema
nacional de ICT a congregar instituições e estratégias com alguns componentes
básicos, de custo alto, mas de retorno econômico seguro e vantajoso.
A
experiência internacional nesse sentido vem se consolidando nos dois últimos
séculos nos países economicamente desenvolvidos e, com o advento das recentes
tecnologias de comunicação da informação, especialmente da Internet, vem se
acelerando nos últimos trinta anos nos países em desenvolvimento,
particularmente, nesses denominados de economia emergente, dentre os quais se podem
distinguir os BRIC (Brasil, Índia, China e África do Sul).
Esses
componentes básicos que favorecem a difusão nacional e internacional do
conhecimento científico ficam claramente perceptíveis no segundo Relatório quinquenal da UNESCO sobre a
Ciência, editado em 2010, com uma profunda análise do ambiente
internacional, consolidando dados do período de 2006 a 2010.
Eles
envolvem, dentre outros,
a)
A
Pós-graduação (+ graduação + educação secundária + primária)
b)
O
evento científico
c)
O
periódico científico
Sobre o
periódico científico, pode-se afirmar que é o centro de todo o processo chamado
comunicação científica. Sem a sua
criação, a ciência como um bem econômico vital de uso local não teria atingido
a culminância de um grande tecido internacional, a correlacionar com menor ou
maior intensidade o conjunto das nações, seus países e seus territórios, num
progressivo enredamento.
Ao mesmo
tempo, como qualquer outro bem que adquire contornos econômicos concorrenciais,
a comunicação científica pode ser capaz de distinguir o que é local, de um país
e de uma região e, com isso, demonstrar o valor desse bem local no diálogo
mundial.
Para
exemplificar, com o material disposto no já mencionado Relatório quinquenal da
UNESCO sobre a Ciência, de 2010, podemos ver a partir dos dados do Science Citation Index (SCI) ali examinados, quais os assuntos que
predominam nos países ou regiões, os idiomas predominantes na produção da
ciência, a interação entre grupos de pesquisa e a colaboração internacional, o
crescimento do número de artigos científicos publicados e, com isso, prospectar as tendências que
certos segmentos temáticos de interesse da comunidade científica, ainda que
partindo do local, apontam para a formação de núcleos de uma comunidade
científica internacional.
Nesse
sentido, a Revista Científica da Universidade Eduardo Mondlane, surge como
parte de um movimento mundial de apropriação de novos recursos de edição e
distribuição do conhecimento inicialmente produzido pela comunidade científica
de Moçambique, mas que, à semelhança das experiências que vemos se desenvolver
no Brasil e outros países, será mais um dos espaços de integração dos povos
moçambicanos com todas as outras nações que, pela Ciência, se aliam no esforço
de fazer a realidade vivencial humana cada vez melhor.
Contudo,
como todo empreendimento humano, uma publicação científica contém perigos
inerentes ao próprio processo que atinge os periódicos locais e internacionais,
dos quais o mais insidioso é o plágio.
A esse propósito, com o título “Epidemia de fraude
na ciência?”, o site do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à
pesquisa (Brasil) [http://www.confap.org.br/epidemia-de-fraude-na-ciencia/]
, noticiou em 8/10/2012, que:
“O fantasma da fraude
voltou a assombrar a comunidade científica nesta semana. Desta vez, não foi um
caso específico.
Uma análise robusta da
literatura biomédica mostrou que a má conduta nesse meio é mais comum do que se
imaginava – ou se fazia crer.
Em estudo publicado na
segunda-feira (01/10/2012) na revista PNAS [Proceedings
of the National Academy of Sciences], pesquisadores dos Estados Unidos apresentam
os resultados de uma revisão detalhada de 2.047 artigos da área biomédica e de
ciências da vida – indexados na base PubMed – que foram ‘despublicados’ entre
1977 até maio deste ano [2012]. [...]
Geralmente as
despublicações são atribuídas a erros não premeditados. Nesse caso, no entanto,
estiveram associadas, sobretudo, a desvios éticos (67,4%), entre eles fraude ou
suspeita de fraude (43,4%), publicação duplicada (14,2%) e plágio (9,8%). Os
erros em si não responderam nem por um quarto das ocorrências (21,3%)”.
Esse perigo atinge aos
editores científicos, avaliadores/revisores, instituição que empresta sua marca
ao periódico. Isso, mais que um aspecto estritamente moral é resquício daquele
componente da conduta humana que tanto Aristóteles, no seu texto Ética a Nicômaco, quanto Freud, em seu
texto O mal estar na cultura, se
referem, ou seja,
“os adultos normalmente apenas se permitem fazer o mal que lhes promete
vantagens quando estão seguros de que a autoridade nada saiba a respeito ou que
nada lhes poderá fazer, e o seu único medo é de serem descobertos”. (FREUD, p. 147).
Tal situação é provocada pela
competição que tem seus componentes econômicos evidentes, dado que o montante
mundial de investimento em pesquisa e desenvolvimento ultrapassa anualmente a
cifra de hum trilhão de dólares. Quanto à comunicação científica, há um mercado comercial de revistas científicas que
nem sempre vem em benefício direto aos autores e às universidades que os
empregam, especialmente quando se trata da cedência de sua produção às editoras
comerciais. De fato, trata-se de um mercado composto por: 1 - editoras
comerciais, 2 - sociedades científicas e 3 – editores independentes aí
incluídas as universidades. As editoras comerciais movimentam números
astronômicos. Somente para exemplificar, com dados tratados por Guanaes e
Guimarães (2012):
Em
2010, a Elsevier registrou um lucro de 1,16 bilhão de dólares, numa receita de
3,23 bilhões de dólares, o que equivale a 36% de margem de lucro [...]. Os
conglomerados editoriais Elsevier, Springer e Blackwell detêm 42% do mercado de
publicações científicas.
Esse mercado está
estimado em US$ 7 bilhões anuais, considerando apenas o que é editado para
pesquisa em ciência, tecnologia e medicina no idioma inglês. (Guanaes
e Guimarães, 2012).
Cabe considerar que o insumo básico do produto
vendido por essas editoras é composto por
2,5
milhões de artigos científicos avaliados por pares e cedidos por seus autores,
sem qualquer pagamento [...]. Essas editoras publicam esses milhões de artigos
anualmente em 25 mil periódicos científicos [dos quais e Elsevier é titular de
mais de 2.000 títulos]. (Guanaes
e Guimarães, 2012).
Para proteger a qualidade de sua
produção contra o plágio a comunidade científica já desenvolveu vários recursos
que estão à disposição dos editores.
Para se proteger da exploração
econômica de seu trabalho intelectual e proteger as suas universidades,
sobretudo as mantidas com recursos públicos, a comunidade tem buscado meios,
através do movimento em torno do acesso livre ao conhecimento publicado. E novamente poderá buscar sensibilizar os
fundos públicos para assegurar que a sociedade possa aceder diretamente a essa
produção. No caso brasileiro, o CNPq e a CAPES têm colaborado continuamente
nesse sentido. Até [o último] 20 de novembro, ficaram abertas as
inscrições para uma chamada pública cujo
objetivo foi incentivar a editoração e publicação de periódicos
científicos em todas as áreas do conhecimento no país [...], dando prioridade
de apoio às revistas divulgadas por meio eletrônico, na internet, em modo de
acesso aberto, ou nos formatos impresso e eletrônico simultaneamente. O
montante de recursos disponíveis é de R$ 6 milhões [para aplicação em 2013]. (CNPq. Assessoria...)
Claro que esse tema é muito vasto, mas
preciso, pelo tempo que me foi dado, encerrar esta fala que apenas abriu algumas questões, desejando o melhor sucesso
à comunidade científica de Moçambique, à Universidade Eduardo Mondlane, bem
como aos editores da Revista Científica da UEM.
Muito obrigado!
Fontes
referidas:
Aristóteles
(383-322 a. C.). Ética a Nicômaco. In: Aristóteles.
Vida e obra. Trad. e notas de Pinharanda Gomes. São Paulo: Círculo do Livro,
1996. p. 117-320.
Cassirer,
Ernst. Ensaio sobre o homem; introdução a uma filosofia da cultura humana.
Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 391 p.
CNPq. Assessoria de
Comunicação Social. Publicações científicas recebem apoio financeiro.
Disponível em: http://www.confap.org.br/publicacoes-cientificas-recebem-apoio-financeiro/.
29/10/2012.
Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo
à Pesquisa (Brasil). Disponível em: http://www.confap.org.br.
Elias, Norbert. O processo
civilizador: uma história dos
costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. v. 1. 271p.
Elias, Norbert. O processo
civilizador: formação do estado e
civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v. 2. 307p.
Flusser,
Vilém. Filosofia da caixa preta; ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. 108 p.
Flusser,
Vilém. Pós-história; vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas
cidades, 1983. 168 p.
Freud,
Sigmund (1856-1939). O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre:
L&PM, 2011. 191 p.
Guanaes, Paulo Cezar Vieira; Guimarães, Maria Cristina Soares. Acesso livre: uma nova crise no horizonte?
ComCiência, 10/06/2012. Disponível em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=79&id=971
Schutz,
Alfred; Luckmann, Thomas. Las estructuras del mundo de la vida. Trad. Néstor Miguez, 2003. 314 p.
Unesco. Relatório UNESCO sobre ciência 2010; resumo
executivo - O
atual status
da ciência em torno do
mundo. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001898/189883por.pdf