26/07/2012

Bibliotecário privatizado: identidade e autoestima[Maio/2011]

A possibilidade de se estabelecer a polêmica é proporcional ao sentimento de incômodo que uma mensagem produz nos destinatários preferenciais ou em quem acidentalmente a lê. E o propósito desta coluna é promover a difusão de textos que possam abrir, alimentar e transformar ideias que ao longo do tempo parecem ter se enraizado na categoria bibliotecária brasileira a ponto de cristalizar a inércia política atual.

E uma ideia foi cristalizada e sobre ela pretendo falar aqui! A que tenta definir o bibliotecário, desde os anos da década de 1960, como possuidor de uma única identidade profissional. Tal ideia foi fortalecida ao longo dos últimos anos, até o final do século XX, pela existência do “currículo mínimo” como modo de compor o conteúdo para a formação de bacharéis, mas que se estende no século XXI, ainda que trabalhe-se com a noção de “diretrizes curriculares”.

Embora houvesse várias formas de competição dentro do espaço social e econômico do país, determinando perfis distintos de bibliotecários, não se viu esses perfis estabelecerem, ao longo de todos esses anos, as especialidades profissionais, como se deu em outros campos como o da Medicina, Engenharia e mesmo Administração, que lidam em seu cotidiano com casos ou públicos distintos.

O experimento dos Grupos especializados nas associações de bibliotecários ou as Comissões especializadas na FEBAB, com poucas exceções, murcharam na medida em que os profissionais foram desprezando as suas entidades. Efetivamente, não há no país associações de bibliotecários por ramos de especialidade. Ouve-se, porém, a menção a uma tipologia profissional que suscita a ideia da necessidade de formação direcionada para os respectivos ramos identificados por ela, assim como especificidades no mercado de trabalho que requereriam na fase de formação na graduação bacharelados de perfis distintos, assim como a formação de licenciados em Biblioteconomia. Segundo essa tipologia há no país bibliotecários públicos (que prestam serviços para as comunidades de um bairro, município ou estado), bibliotecários escolares (que prestam serviços para as comunidades escolares, para atender a especificidade dos projetos pedagógicos de um estabelecimento de ensino), bibliotecários universitários (que prestam serviços para as comunidades universitárias, constituídas num ambiente integrado de ensino de graduação, pós-graduação e pesquisa),bibliotecários empresariais (que prestam serviços para as comunidades formadas em torno da produção de atividades economicamente lucrativas)  e bibliotecários governamentais (que prestam serviços para as comunidades constituídas pelos agentes estatais nos poderes executivos, legislativos e judiciários e nos âmbitos federal, estadual e municipal).

Entretanto, quando se olha mais detidamente o que ocorre cotidianamente como realidade de mercado de trabalho, parece haver, de fato, uma categoria de profissionais bibliotecários cujas ações têm duas dimensões: bibliotecários privatizados em que seus empregadores os tomam como agentes de atividades fins específicas, em que contariam como centrais os interesses estritos desses empregadores ou de seus prepostos dirigentes e atingem os tipos escolar, universitário, empresarial e governamental e bibliotecários coletivizados, cuja missão realizada pelas Bibliotecas públicas, constituídas como prestação de serviço social pelo estado, estão igualmente obrigados dar cumprimento aos interesses políticos dos dirigentes de estados e municípios.  

Possivelmente, essa matriz política que faz do bibliotecário, majoritariamente, o empregado dos interesses discricionários dos dirigentes públicos privatistas e dos proprietários de negócios privados, não foi devidamente interpretada pela escola de biblioteconomia e pelos próprios bibliotecários brasileiros. Essa lacuna, que é de natureza política, ao mesmo tempo em que impede a categoria profissional de sentir a necessidade de articular-se com base na especificidade de uma virtual especialidade profissional, também impede que os bibliotecários constituam uma escola de biblioteconomia que os prepare para atender a mercados correspondentes a essas especialidades.

E por conta dessa má leitura, parece configurar-se como quase natural uma única forma, com pequenas nuances, de compor a grade curricular do Curso de graduação em Biblioteconomia no Brasil. O resultado disso é que muita gente (estudantes atuais e egressos) reclama de uma má qualidade e inadequado ou insuficiente conteúdo ministrado na formação do bibliotecário. Porém, a essa reclamação nem sempre segue   um discurso capaz de propor os aperfeiçoamentos devidos. Daí a crise de identidade que há muitos anos se instalou no interior da categoria profissional (um estérilser ou não ser bibliotecário) e uma paralisia da representação política da escola e dos docentes de Biblioteconomia. Paralisia que se manifesta na falta de força da entidade que representa os docentes e os cursos de Biblioteconomia brasileiros – antes a ABEBD, hoje a ABECIN ‒ o que, certamente, não se dá por desinteresse de seus dirigentes, mas pelo individualismo dos docentes e dos cursos de Biblioteconomia.

Parte desse individualismo pode ser creditada ao fato de que as políticas governamentais a partir dos anos 1970 alimentaram a ideia de que o desenvolvimento do país requeria um grande acento na organização da informação científica e tecnológica - ICT e que bibliotecários deviam ser formados para atuar nesse campo. Na medida em que, paralelamente, a ICT envolveu progressivamente Governo e Empresas e, mais tarde, Governo, Empresa e Universidade houve um certo ônus para os Cursos de Biblioteconomia. Eles foram cada vez mais sendo forjados como ambiente  “multidisciplinar”, constituídos por docentes originários de vários campos de conhecimento; com isso, maior se fez a “babelização” do discurso e da pedagogia biblioteconômica, acentuando a crise de identidade profissional, o enfraquecimento da Associação dos docentes e dos Cursos de Biblioteconomia e, significativamente, se fortalecendo a queda na autoestima de alunos e egressos desses Cursos.

Trocando em miúdos, é urgente uma mudança nesse horizonte. Torna-se necessário que as especialidades profissionais do bibliotecário sirvam de norte para sua ação política e para a reorganização do ensino de Biblioteconomia no Brasil.

Auxiliares de biblioteca e bibliotecários – juntos e aliados?[Abril/2011]



Há cinquenta anos, durante o III Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, realizado em Curitiba no ano de 1961, foram aprovadas 23 recomendações pela plenária final. Dentre elas consta o bloco constituído pelas quatro abaixo:

Número 11 – Que seja organizado nas Escolas de Biblioteconomia o curso para auxiliar de biblioteca;
Número 12 – Que seja determinado o programa e a duração para esse curso, a fim de haver uniformidade;
Número 13 – Que seja fornecido, aos aprovados no curso, o certificado de auxiliar de bibliotecas;
Número 14 – Que seja pedida às autoridades competentes a criação, no quadro do funcionalismo, do quadro de auxiliar de bibliotecas.

Em 1973, doze anos depois, o Conselho Federal de Biblioteconomia - CFB, através da Resolução de número 75, definia as atribuições do auxiliar de biblioteca.

Em 22 de agosto de 2008, isto é 25 anos depois da entrada em vigência da resolução CFB 75/73, pela Resolução de número 90, o mesmo CFB revogou aquele instrumento, nos seguintes termos:

“Revoga a Resolução CFB n. 75/73 que trata das atribuições do Auxiliar de Bibliotecas

O Plenário do Conselho Federal de Biblioteconomia no uso das atribuições legais;

Considerando que a redação da Resolução CFB n. 75/73 não condiz com o disposto na legislação que
regulamenta a Profissão de Bibliotecário;

Considerando que o CFB não reconhece a formação do Auxiliar de Bibliotecas para fins de concessão de
registro profissional;

Resolve:

Art.1º - Revogar a Resolução CFB n. 75/73.
Art.2º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

(Publicado no Diário Oficial da União do dia 26.08.2008, Seção 1, página 95) (Disponível em:http://repositorio.cfb.org.br/bitstream/123456789/144/1/resolucaoCFB-n.090-22ago2008.pdf)”

Esse panorama exibe claramente que há distorção na relação entre os Bibliotecários bacharéis em Biblioteconomia e os Auxiliares de Biblioteca. Creio que tanto os conselheiros endossantes em 1973 da criação da Resolução 75 quanto os que em 2008 endossaram a criação da Resolução 90 têm razões, para além do plano jurídico, que encontram nesse plano os argumentos tanto para estabelecer quanto deixar de estabelecer um “norte”  para as atividades do Auxiliar de Bibliotecas na sua relação com os Bibliotecários bacharéis.

Mas não deixa de ser relevante que esse movimento pendular da categoria bibliotecária reforça a percepção de déficit identitário. Por que seria o Auxiliar de Biblioteca uma ameaça aos Bacharéis em Biblioteconomia, ameaça que se revelou para o CFB apenas em 2008?

A realidade do mercado profissional chama a atenção para o fato de que há no Brasil, uma única entidade que se constitui como lugar em que Bibliotecários bacharéis  e Auxiliares de Biblioteca comungam interesses. Trata-se do Sindicato dos Bibliotecários, técnicos e auxiliares de bibliotecas do Estado de Minas Gerais. Não conheço outra entidade bibliotecária no Brasil que, na sua razão social, estabeleça essa comunhão. Isso é marcante! Tal atitude assinala, pois, que diante da sociedade, ao lidarem com o mercado, vêem algo que elegem como de comum interesse, que é a defesa salarial e de dignidade profissional, para se postarem de modo firme diante de um patronato que também vela por seus próprios interesses.

Em anos mais recentes, tem havido um tour de force no sentido de se resgatar a deliberação tomada há 50 anos pelos Bibliotecários brasileiros. Esse movimento pode ser analisado sob vários aspectos e um deles poderia ser a existência de uma certa semelhança entre as liberdades sociais e políticas que havia no início dos anos da década de 1960, antes do Golpe de 1964, e todo o período em que o país viveu a maior parte da primeira década do século XXI. Essa conjetura não elide o fato de que por muitos anos alguns Bibliotecários bacharéis permaneceram na luta e empenhados pela criação e oferta de Cursos para a formação de Auxiliares de Bibliotecas, embora nem sempre sendo devidamente valorizados os seus esforços.

Em 2006, Ferreira publicou na revista Ciência da Informação (v. 35, n. 1, p. 102-114, jan./abr. – disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ci/v35n1/v35n1a11.pdf ) o artigo Auxiliares de biblioteca e trabalho informacional: desafios e possibilidades para o Sibi/UFPA. Provavelmente, como consequência de seu empenho em estudar o tema e propor saídas, em 08 de novembro de 2010, teve início a etapa presencial do Curso de qualificação de auxiliares de bibliotecas, na Universidade Federal do Pará. A finalidade do curso é qualificar auxiliares de bibliotecários para os pólos da Universidade Aberta do Brasil (UAB) na Amazônia, preparando-os para o manuseio de acervos dos pólos da região, por meio de aprendizado técnico e teórico. (noticia disponível em:

Com alguns meses de antecedência, em 27 de maio de 2010, teve início o Curso de Capacitação de Auxiliares de Bibliotecas, visando atender os Polos de Educação a Distância (EaD) da UFG, como parte do projeto de estruturação das Bibliotecas dos Polos de EaD, parceiros da universidade. O propósito explícito do curso é capacitar os Auxiliares de Biblioteca, para que compreendam o papel, a importância e a dinâmica dos serviços de uma biblioteca, contando carga horária de 90 horas/aula (notícia disponível em: http://www.ciar.ufg.br/v4/index.php?option=com_content&view=article&id=733&Itemid=60

Algumas perguntas podem ser apontadas e muitas respostas podem ser construídas. Todas, perguntas e respostas, representarão parte do pensamento dos bibliotecários bacharéis brasileiros. Entretanto, alguma coisa fica evidente: se a realidade se transforma permanentemente e, portanto, decisões relacionadas ao mundo ocupacional não escaparão disso, há circunstâncias, que pelo seu caráter estruturante da realidade, não se modificam tanto e uma delas, pode-se imaginar, é que bibliotecários bacharéis que trabalham em bibliotecas e serviços de informação não poderiam dispensar auxiliares de bibliotecas, senão por outra razão, pela simples racionalidade econômica.

Outra coisa a pensar, mas que já havia sido refletida e respondida pelos nossos colegas Bibliotecários há 50 anos: Que sejam determinadas as diretrizes para o programa e a duração para o Curso de Auxiliares de Bibliotecas, a fim de haver um equilíbrio entre as necessidades de atuação desse profissional e a compatibilidade entre sua preparação e a do próprio bacharel. Isso é pedir muito?
        
Na oportunidade em que está sendo articulada a Programação do XXIV CBBD, a realizar-se neste ano de 2011, na cidade de Maceió, com o tema Sistemas de Informação, Multiculturalidade e Inclusão Social, parece-me adequado que se encaminhe algo sobre essa cinquentenária discussão inaugurada em 1961 neste mesmo fórum.

Por que o retrocesso na BU-UFSC?

[Março/2011]

O subtítulo desta coluna pretende chamar a atenção para o fato de que houve uma época em que a condução que os(as) bibliotecários(as) brasileiros(as) davam à sua profissão visava a um futuro com mais companheirismo e solidariedade. E eles(as) deliberaram sobre isso.  As principais deliberações ocorreram pelos anos das décadas de 1950/1960 e foi sustentado por muitos bibliotecários(as) em muitas instituições e por muito tempo. Naquela oportunidade os(as) bibliotecários(as) tinham a noção de que há relações de poder apropriadas para assegurar a devida dignidade de uma equipe profissional no âmbito de uma universidade.

Em 1954, ao final do I Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, aprovou-se a  recomendação (de número 15) “Que sejam as Bibliotecas Centrais ou Serviços Centrais de Bibliotecas Universitárias subordinadas diretamente ao Gabinete do Reitor”.

Em 1963, ao final do IV Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, foram aprovadas duas recomendações (de números 18 e 21) “Que haja participação do bibliotecário-diretor no organismo de governo da universidade ou faculdade”; “Que os bibliotecários diretores de bibliotecas façam parte das Comissões de Planejamento das Universidades”.

Em 1965, ao final do V Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, aprovou-se a recomendação (de número 57) “Que a direção das bibliotecas universitárias tenha participação na Administração Universitária, ou seja, nas Congregações e Conselhos, das Instituições de Ensino Superior”.

Além dessas, no IV e V CBBDs foram recomendadas às IES “Que o orçamento total de cada universidade ou instituição destine não menos de 5% para os serviços bibliotecários”.

De onde os(as) bibliotecários(as) tiraram essas recomendações? Certamente estudaram detidamente e viram a relação intrínseca que há entre participar dos órgãos deliberativos centrais das IES ou faculdades, participar de seu órgão de planejamento e ter relação direta com o gabinete do dirigente principal e a garantia de recursos apropriados para o funcionamento correto dos serviços a serem assegurados aos usuários. Ou seja, esses(as) bibliotecários(as) viam a relação entre sua atividade e a forma de torná-la respeitada. E, significativamente, também viam que deviam respeitar a equipe profissional de lideravam. Só com essa condição é que poderiam respeitar os usuários dos serviços bibliotecários da instituição universitária.

Em várias IES brasileiras há bibliotecários(as) que fazem valer essas ideias e que se esforçam para que em suas instituições essa relação aconteça. Em algumas outras, em face de acomodações políticas não totalmente transparentes tem-se visto a perda dessa correlação de poder e, portanto, o retrocesso quanto ao posicionamento hierárquico do setor. Essa “queda” de posição, que distancia a direção da biblioteca do gabinete do dirigente principal da instituição, se torna incompreensível para bibliotecários e estudantes de biblioteconomia que vêem nisso desprestígio, desrespeito profissional e submissão a outros princípios que destoam da defesa da dignidade profissional e, portanto, repelem a boa conduta ética às profundezas.

Ilustra de forma significativa essa situação, o que passou a ocorrer com o Sistema Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina – BU-UFSC, a partir do ano 2008, quando a Instituição veio a ser administrada por uma equipe eleita pela comunidade e confirmada pelo Ministro da Educação com o refrão “A UFSC do século XXI”. Pois bem, nas administrações anteriores o Sistema BU tinha inicialmente vínculo com a Pró-Reitoria de Ensino e mais tarde, aos menos nos doze anos que antecederam a atual gestão, esse vínculo foi com o gabinete do Reitor. Nesse período não fora implantada formalmente a presença da direção da Biblioteca nos Conselhos deliberativos da UFSC, nem do órgão de planejamento central  e nem, ao menos, o volume de recursos repassado à Biblioteca se aproximou do desembolso de no mínimo cinco por cento dos recursos anuais totais da Instituição para investimento no Sistema. Em uma UFSC do século XXI  se esperaria que tudo isso viesse a acontecer. Não foi o que se deu. Ela ficou ainda mais distante do dinheiro que seria suficiente para o adequado cumprimento de sua função, ficou sem vinculação ao gabinete do Reitor e sem participação nos Conselhos deliberativos ou no órgão de planejamento central. Na UFSC do Século XXI, o Sistema BU foi para uma Pró-Reitoria denominada  Infraestrutura. Lá a BU é parceira da Prefeitura do Campus, do Biotério Central, do Escritório Técnico, do Núcleo de Processamento de Dados etc. A pergunta é por que se deu esse retrocesso do Sistema BU-UFSC em relação à sua participação no conjunto dos setores da Instituição? Por que o setor bibliotecário ‒ que está vocacionado a ser parceiro dos docentes, pesquisadores e estudantes de todos os níveis ‒ passou a ter como seus parceiros imediatos, na negociação de recursos, na priorização de ações, na compreensão da política institucional, justamente segmentos operacionais, que sem demérito de suas importantes funções, não enraízam sua ação nas atividades fins de ensino e pesquisa?

Passados já quase três anos desse arranjo institucional na UFSC, o imperativo ético bibliotecário aguarda esclarecimentos da Direção e equipe de bibliotecários daquele estabelecimento.