15/09/2011

A fraqueza da atuação do bibliotecário brasileiro como (o)missão politica e profissional

Fonte da publicação: INFOHOME - http://www.ofaj.com.br - Novembro/2010]

Na coluna publicada no último mês estabeleci um conceito para distinguir de uma Biblioteconomia de ICT (Informação Cientifica e Tecnológica) o que chamei de Biblioteconomia Social. Disse que:
“Biblioteconomia social pode ser compreendida como todo o conjunto de atividades bibliotecárias realizadas no âmbito operacional de bibliotecas públicas (estatais ou comunitárias) e bibliotecas escolares, com atendimento público em sedes fixas ou através de serviços móveis, no caso das primeiras. O caráter social (...) aludido é dado pelo propósito a que os serviços se destinavam, isto é, majoritariamente para prover à população uma formação autodidata, uma formação geral e servir como instrumento à educação”.

Efetivamente, esse propósito da oferta de suporte de conhecimento para a educação delimitava o alcance das práticas bibliotecárias majoritariamente realizadas até a metade dos anos da década de 1960. Hoje, naturalmente, essa biblioteconomia social tem um alcance maior, especialmente pela ampliação das necessidades informacionais coletivas dos moradores e visitantes do país, do potencial econômico do Brasil, da grandeza de seu parque educacional e da presença de uma quantidade expressiva de micro e pequenos empreendimentos no território brasileiro. Esses empreendimentos têm um porte de negócio que não lhes permite ter biblioteca própria, contratar serviços de profissionais bibliotecários ou ter equipe para buscar o suprimento de suas necessidades junto às unidades de informação nas entidades representativas dos setores econômicos comerciais, industriais e de serviços. Esses micro e pequenos empreendimentos representam mais de 90% ou um pouco mais de três milhões e quinhentas mil empresas em 2008 no Brasil.

Assim, considero que também devam ser incluídas no âmbito da Biblioteconomia Social o atendimento que, através da Biblioteca pública, deve ser dado para públicos com características dessa ordem. Esse entendimento que expresso aqui, soma-se a uma percepção de há muito refletida no contexto brasileiro e exposta, por exemplo, em textos de Ana Maria Polke e de Emir Suaiden, quando tratam do que definem como informação de uso utilitário. Al Kagan, no artigo IFLA and Social Responsibility: A Core Value of Librarianship, disponível em: http://www.indiana.edu/~libsalc/african/IFLA.pdf, afirma seguindo essa mesma linha de compreensão que:
“Public libraries provide community information on local health services, bus routes, job opportunities, and other social services. Libraries can also provide tax forms and condoms to prevent HIV/AIDS. Public libraries can be a place for literacy classes and voter registration. They can indeed become community centers where people, including poor people, immigrants, and diverse populations of all kinds find materials and participate in local culture and civic affairs to actualize their potentials and develop their communities”.

Entretanto, para além de se expor uma noção ou oferecer uma ementa do que caberia incluir no conceito ou definição de Biblioteconomia social, como um campo de estudo e, por isso, como o recorte de um segmento da realidade para análise, cabe alertar que tal escolha deverá decorrer de uma postura e atitude ética e das escolhas que cabem aos bibliotecários para assegurar respostas à missão que a doutrina ética escolhida possa lhes oferecer como orientação sem, simultaneamente, descurar de como está constituída a realidade brasileira.

O ambiente brasileiro, a considerar a partir da invasão do território que o abriga pelos europeus no ano 1.500, e enfocando os aspectos filosóficos, políticos, sociais e econômicos, continua a ser uma construção com a integração de diferentes povos, oriundos de ambientes rurais e médio industriais. Essa circunstância coloca diante de todos matrizes sociais e psicológicas distintas, forjando uma política ainda civilizacionalmente primitiva, como explicada por Faoro em Os donos do poder; socialmente excludente, como demonstrada por Freyre em Casa Grande/Senzala; etnicamente indefinida, como demonstrada por Ribeiro em O povo brasileiro; economicamente subordinada, como demonstrada por Furtado, em Formação econômica do Brasil e moralmente deformada, como demonstrada por Buarque, em Raízes do Brasil. Saber um pouco sobre essas matrizes permitiria ao bibliotecário brasileiro entender melhor porque vem construindo, como o faz, a sua política profissional de uma forma pouco comprometida. É que os líderes políticos presentes nessa comunidade profissional, assim como nos demais grupos profissionais, talvez não estejam também comprometidos devidamente com a produção de um bem estar social subordinado a uma postura de ética deontológica, mas, sim, subordinado a uma conduta consequencialista, decorrente do utilitarismo. Essa postura gera em quase todas as lideranças a capacidade de fazer a “sua parte” condicionada ao controle do resultado “possível” e apostando na ignorância do “outro” quanto ao saber cívico, técnico e moral. Por esse raciocínio, se explica a presença da escola que não ensina devidamente, do bibliotecário que acentua a ação técnica sobre a coleção e ultimamente sobre a tecnologia, desconhecendo que tudo isso é secundário em relação ao usuário.

É por causa de uma precária leitura da realidade e por acentuar a mesma noção de poder detida pelos demais segmentos da sociedade, que também os bibliotecários tendem a criar um número cada dia maior de entidades de caráter representativo. Mas são entidades que pouco representam na medida em que carecem de buscar receita financeira do mesmo contingente de profissionais e, por isso, já começam enfraquecidas ou tendem a sê-lo com o correr dos anos. Além disso, quanto mais entidades mais abandono dessas pelos profissionais que tendem a vê-las como “chupins” ou “sanguessugas” econômicos dos quais devem se afastar. A conseqüência mais perceptível dessa atitude é a de acomodação e da espera de que as diretorias dessas entidades dêem conta de ser as entidades. Essa postura representa o “esquecimento” de que as entidades são, prática e moralmente, o conjunto de seus associados. Mas, ao mesmo tempo, a pouca filiação de membros nessas entidades da biblioteconomia, como associações e sindicatos, tendem a confirmar o descompromisso e o distanciamento sistemático de seus sócios “naturais”.

Quando se vê esse quadro, a postura mais ética e prudente, quando se entende que é possível construir-se um caminho para o fortalecimento da identidade de um grupo profissional, com vistas ao reconhecimento social, é lutar para propor e conseguir adesões para construir uma aproximação programática entre as entidades. Isso suporia que essas entidades, a partir da adesão de suas diretorias a tal participação, seriam estimuladas a retomar as ações de auto estimulação política, a retomada de estratégias de discussão e construção permanente do futuro. Assim, com uma possível força moral, poderiam assumir compromissos perante as demais entidades da biblioteconomia e, mutuamente, de empreenderem suas missões focadas na sociedade a partir do seu próprio auto fortalecimento.

Dentre as manifestações que recebi ao longo de outubro de 2010, em alusão ao texto publicado no início do mês, chegou uma mensagem que conclui assim: “gostaria que quando e se houver reunião de entidades que elas pensassem nas eleições municipais e fechassem alguns pontos para trabalhar com os candidatos a futuros gestores e vereadores. Sempre espero por mudanças.”

Esse recorte demarca bem a situação: há alguém, e que é uma grande parte dos bibliotecários brasileiros, “que sempre espera por mudanças”. Essa atitude contemplativa ─ que a leitura de Faoro em Os donos do poder; Freyre em Casa Grande/Senzala; Ribeiro em O povo brasileiro; Furtado, em Formação econômica do Brasil e Buarque em Raízes do Brasil dá material para compreender como se constitui ─ tem o condão de transferir a terceiros a responsabilidade política e moral do bibliotecário. Só que a atitude de esperar não é um componente da missão profissional do bibliotecário. Se interpreto Ortega y Gasset pelo que escreveu em Missão do bibliotecário, com um pouco de clareza, tiro como resultado que por volta do século XV era missão “caçar livros”, por volta do século XVIII era missão “caçar leitores” e neste século é missão construir os meios para subsidiar os leitores a continuarem a ser os criadores de realidades cada vez mais compatíveis com o desenvolvimento humano. Dá para o bibliotecário cumprir essa missão de forma contemplativa? Mais que isso, dá para propugnar que as entidades pensem sem participar de seus fóruns e de suas deliberações?

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