(Palestra
apresentada em Brasília - DF por ocasião da Comemoração do Dia do Bibliotecário em
12/03/2013, promovida pela Biblioteca da Presidência da República,
juntamente com Sistema CFB/CRB, ABDF, UNB, em evento intitulado
“Consciência Profissional: vamos sair da zona de conforto?”
Francisco das Chagas de Souza
Universidade
Federal de Santa Catarina
Departamento
e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação
A
vida pessoal e a vida profissional representam distintos âmbitos da
existência do indivíduo na sociedade. Tomando-se essa noção como
premissa, pode-se situar o tema desta discussão considerando alguns
fundamentos que foram intuídos por distintos pensadores de
diferentes épocas, situados em contextos particulares. Certamente,
eles puderam refletir sobre circunstâncias que se lhes deram como
vivências, tomadas das experiências mais imediatas que tais épocas
e contextos puderam lhes dar à observação como universos de
relações. A partir de suas buscas intelectuais, esses pensadores
constituíram uma consciência de Ser, isto é, formaram um
conhecimento sobre o homem, seu lugar no universo, a distinção da
singularidade pela individuação, a interrelação Eu + Outros, as
distintas ações que Eu + Outros podem desenvolver, o sentido
dessas ações para Eu + Outros, a ideia da comunhão Eu + Outros
como Nós, a ideia da confrontação Eu [contra] outros, etc.
Estou
falando aqui a partir de uma matriz de pensamento que leva em conta a
existência de um mundo em que vivemos porque o construímos
socialmente a partir da nossa constituição como indivíduos, que só
pode se dar pela presença de outros indivíduos já à espera de
nossa chegada ao mundo da vida, ao mundo da leitura, ao mundo
econômico, ao mundo do trabalho. Essa matriz de pensamento constitui
a corrente
filosófica designada Fenomenologia cujo principal expoente no século
XX foi Edmund Husserl.
Como teoria social convergente com essa filosofia se constituiu o
Construcionismo, isto é, uma forma de expressão, também chamada
fenomenologia social, tendo como estudiosos mais destacados
Alfred Schutz e Thomas Luckmann. A produção encetada por esses
pensadores tem sido expandida
por vários seguidores: Dreher, Acevedo, Carcamo Landero, Estrada
Saavedra, Mora Nawrath, Salas Astrain, Hernandez Romero, Retamozo,
dentre outros.
Tomo
um pequeno recorte de um texto de Dreher, que analisando o pensamento
de Schutz e Luckmann define
o alcance do conceito de mundo da vida, apresentado como uma noção
chave da reflexão daqueles autores:
“...el
mundo de la vida incluye no sólo la esfera del yo
solitario, sino
especialmente al mundo social, y particularmente las ideas colectivas
compartidas, tales como las realidades religiosas, científicas,
artísticas o politicas com una estructura de sentido finita, pero
también los mundos de los sueños y la fantasia” (DREHER, p. 87)
Nessa
concepção esboçada, exposta e afirmada como “teoria do mundo da
vida” tal mundo se manifesta como a realidade inteira, nos seus
diferentes âmbitos, que se nos apresenta, a partir de nossa
experiência individual, e independentemente de nosso estado de
consciência e vigília. Tendo em vista que nos situamos
perceptivamente nas dimensões externa e interna de espaço e tempo,
temos como foco central a realidade cotidiana, na qual se constituem
nossas razões para fazer algo e nossas motivações para alcançar
resultados. Essa focalização na realidade cotidiana não nos isola
das realidades extracotidianas (constituidoras do nosso acervo de
conhecimento já constituído sobre o passado e projetado). Parte
substantiva da realidade cotidiana é constituída pelo que os
autores da fenomenologia social chamam de mundo do trabalho. Esse
conjunto de relações, situações e circunstâncias não se faz sem
os meios necessários à sua realização e que são possíveis a
partir da ação social e da comunicação.
Um
aspecto não negligenciável dessa fundamentação teórica, é que
ela tem obtido uma relevante atenção dos pensadores de distintos
campos acadêmicos e profissionais durante grande parte do século XX
atravessando-o e alcançando o século atual. Com outra
forma de expressão essa fudamentação está presente na produção
reflexiva de Habermas, Moscovici e
outros filósofos, psicólogos e sociólogos que voltam seus olhares
para o conhecimento e as determinantes epistemológicas dos vários
ramos de ciência, com maior ênfase nas ciências humanas e sociais.
Por essa razão, pode-se dizer que essa fundamentação contribui
como uma base para que se possa refletir sobre um tema tão amplo
quanto Consciência
Profissional e atitude Profissional,
que
é a maneira pela qual traduzo o título desta programação alusiva
ao dia do bibliotecário em Brasília.
Quando
o indivíduo, pelo seu envolvimento com ações e conteúdos
relativos ao mundo do trabalho, forma uma consciência profissional
dele se espera o domínio de claras evidências de onde vem e em que
consiste o seu campo profissional (ou seja, qual é a ontologia desse
campo?); quais são as finalidades a serem atendidas com as ações
desenvolvidas a partir dessa ontologia (isto é, qual sua
teleologia?); quais são os compromissos humanos e sociais que estão
sendo atendidos com as ações realizadas (isto é, quais princípios
doutrinários da ética estão em jogo?) e, por fim, qual o teor que
constitui o seu saber profissional, as formas de constituição desse
saber, as implicações da escolha feita em relação aos meios e
procedimentos para constituir esse saber (ou seja, qual a sua
epistemologia?).
Atenho-me
aos aspectos apontados no parágrafo que precede, tomando como
horizonte disciplinas ou ramos da Filosofia, por acreditar que ficam
evidentes ao menos dois momentos a serem considerados no exame do
tema aqui discutido.
O
primeiro, consciência
profissional,
guarda maior relação com a compreensão que o profissional pode
formar em torno das finalidades ou teleologia de sua ação, cuja
realização depende do conhecimento que ele domina e que o
caracteriza socialmente como especialista. O segundo, atitude
profissional,
está mais imediatamente relacionado com os compromissos humanos e
sociais, isto é, com a ética a ser orientadora de sua ação
profissional, ou seja, que lhe cobra afirmar como valor profissional
os princípios que norteariam a relação de comunhão Eu + Outros
como Nós e jamais a relação confrontativa Eu [contra] Outros.
Esses
focos se inserem como parte do mundo do trabalho, o qual pode ser
tratado como um recorte da realidade cotidiana que, por sua vez,
está articulada ao mundo da vida. A consciência profissional e as
distintas manifestações de atitude profissional são, portanto,
circunstâncias construídas a partir da realidade cotidiana, das
realidades extracotidianas, do mundo escolar e, por isso, é
consolidada como conhecimento que se institui ao ser conformado como
um extrato, sempre em movimento, do mundo da vida.
De
outro lado, pode-se considerar que Consciência profissional e as
várias expressões de Atitude profissional são também saberes ou a
expressão de um domínio que se forma pela influência de relações
interpessoais que ultrapassam o mundo escolar teórico e o mundo das
aprendizagens práticas. Assim, a consciência profissional e a
atitude profissional incorporam valores que vêm do universo das
vivências familiares, das convicções religiosas, da aceitação
das diferentes formas de expressão social e humana, da historicidade
do campo profissional, etc.
Isso
quer dizer que Consciência e Atitudes profissionais são formas, a
primeira abstrata e a segunda representacional, que expressam
profundos valores. Evidentemente, que, por isso, elas são produtos
de interpretações formadas a partir de ilimitadas sensações e
situações que se dão no mundo da vida, como tudo o mais que compõe
as deliberações individuais e as ações dos indivíduos nesse
mundo.
Do
modo como aqui interpreto o tema proposto e a forma como penso que
para ele os organizadores do evento foram levados, posso intuir que
há uma valoração exposta em sua formulação. Creio que desejariam
dizer que para demonstrar ser profissional consciente é preciso que
o membro dessa categoria de trabalhadores especializados saia de uma
assim denominada zona
de conforto,
lugar representacional que significaria a assunção de uma atitude
moralmente negativa e até antissocial de quem nela se encontra.
Neste
ponto, para problematizar a ideia zona de conforto, que é decorrente
de uma atitude pessoal de quem nela se encontraria, caberia definir
do que se trata tal zona no mundo do tempo presente. A resposta mais
imediata que se pode obter assimila essa noção a uma predisposição
do indivíduo, cada indivíduo que lá estaria, a centrar-se apenas
em si mesmo, especialmente em relação a fazer investimentos de
tempo e dinheiro no seu desenvolvimento e atualização
profissional, a tomar iniciativas, a buscar uma permanente superação
do conhecimento que domina. Pode significar que um conjunto de
indivíduos, inseridos em dada profissão, envolvidos com a
realização de suas ações profissionais numa determinada região
geográfica e socioeconômica, não consegue ter uma convivência e
uma leitura suficientes dos fatos do cotidiano e, assim, estariam
fraudando sua missão na sociedade. Mas, nessa hipótese, quem está
assumindo perceber e afirmar que ocorre essa fraude? São outros
contra uns tantos eles; são os Nós que acreditam estar agindo da
forma correta. Esse Nós, que significaria o conjunto dos que agem
bem, em seu grupo próximo, estariam convictos que não mantém uma
atitude de má convivência e má leitura de seus objetivos no
sentido de serem atuantes, empreendedores e certamente atualizados,
etc. E, assim, apontam aqueles Outros, protegendo o seu Eu interior
(pessoal e grupal), sendo guardiães de sua identidade profissional,
fonte saneadora de sua consciência.
Neste
ponto desta comunicação caberia lembrar que estou a apontar
aspectos que se aproximam do teleológico (ou seja, das finalidades
que um Eu enxerga acerca de sua atuação profissional) e do ético
(isto é, do bem que esse Eu sente produzir com sua atuação). Esses
Eus assumem uma direção de sua individualização e valorizam a
oportunidade de apontar de certa forma para quem é tido por eles
como acomodado, numa atitude de denunciar a Outros que lhes
envergonham e lhes desvalorizam socialmente.
Porém,
pode-se perguntar se não é possível formar outro juízo, partindo
de outros fatores de valoração? Por exemplo, tomando agora o
aspecto epistemológico, isto é, de tentar compreender como se
constrói o conhecimento do saber profissional do bibliotecário
ocidental. De tentar considerar que pode vir daí a base de certa
conduta profissional
inapropriada.
Quero
me reportar a uma reflexão que considero muito expressiva, de Alfaro
Lopez, segundo a qual o bibliotecário também poderia estar
condicionado em sua atuação profissional pela matriz originária de
um conhecimento tomado como um saber próprio, fundamentado e
suficiente. De acordo com o autor, que sustenta a maior parte de sua
reflexão na obra de Bachelard, o conhecimento
empírico da Biblioteconomia do século XIX, majoritariamente formado
como a codificação da prática, por isso, de forte recorte técnico,
pouco abstrato, isto é, limitadamente teórico, atingiu, desde há
muitas décadas o estágio de obstáculo epistemológico, ou seja,
avolumou-se em determinado patamar de saberes e não impediu que os
profissionais se conformassem com tais limites desse conhecimento. O
início da construção dessa estagnação foi em parte contemporâneo
de uma orientação epistemológica positivista, quantitativa e
autoconservadora, que ele demonstra. Dito de outra forma, a formação
do conhecimento biblioteconômico passou a olvidar as transformações
pelas quais passavam o mundo da vida e o cotidiano. Os criadores do
conhecimento biblioteconômico majoritariamente continuaram a
produzir um saber superado, incapaz de responder ao mundo da vida e
com sérias implicações à limitação de seu mundo do trabalho. Os
bibliotecários continuaram a aplicar esse mesmo saber,
respaldando-se no argumento de sua origem acadêmica.
Retorno
à teoria do mundo da vida,
e destaco da leitura de Mora Nawrath a afirmação sobre o mundo
cotidiano que busca em Schutz. Ele
diz que “Schutz supone que el mundo
cotidiano
es un campo de acción o dominación em el cual llevamos a cabo
nuestro proyecto” (p. 55). Dito de outra maneira, os indivíduos
não agem sem um objetivo, sem um projeto em mente. Se isso for
tomado como verdadeiro para o profissional bibliotecário, pode-se
perguntar se a produção e adoção de um saber teórico superado
constitui parte do seu projeto de participação no mundo do
trabalho. Se esse saber teórico superado, que é seu projeto, lhe
impede de ver no seu cotidiano a necessidade da ação política
como um dos motores da ação profissional. Sendo as respostas
positivas para essas questões, tal projeto pode ser constitutivo de
uma atitude a qual se deve chamar de zona de conforto?
Ao
tratar de outra noção fundamental, dentre aquelas que construiu,
isto é, o conceito de ação humana, Schutz (A formação de
conceitos, p. 153) afirma: “... o conceito de ação humana em
termos do pensamento do senso comum e das ciências sociais inclui o
que pode ser chamado de ações
negativas,
isto é, abstenção intencional de agir...”.
Em
síntese, pode-se dizer que há uma epistemologia positivista que
presidiu a construção a partir do século XIX de um conhecimento
biblioteconômico contendo determinadas características, que o
incapacita de responder adequadamente às demandas do mundo atual.
Esse conhecimento, por ser ainda predominante constitui um obstáculo
epistemológico, para usar os termos de Bachelard, que exigiria dos
produtores de conhecimento biblioteconômico a promoção de uma
ruptura epistemológica, estratégia que não está inteiramente
evidente. A persistência da produção de um conhecimento
biblioteconômico superado, é, ainda assim, adotada como caminho
para formular o suporte teórico de uma ação profissional, a qual
nos termos de Schutz pode ser caracterizada como uma ação
negativa intencional de
parte de um segmento significativo de bibliotecários brasileiros.
Essa ação negativa causa perturbações no âmbito técnico,
político e acadêmico do corpo profissional atuante no país. Ao ser
percebida por alguns membros da categoria profissional bibliotecária
essa ação negativa intencional leva-os a afirmar que Outros estão
na zona de conforto e dela precisam sair, como expressão de boa
consciência profissional.
Ora,
será que toda a complexidade das relações existentes no universo
bibliotecário, incluindo a precariedade da visão se seus membros
sobre boas práticas profissionais, cabe nesta noção de zona de
conforto? Quero voltar um pouco, mas muito rapidamente ao quadro de
desenvolvimento histórico da moderna profissão de bibliotecário no
Brasil. Primeiro, fez-se a Escola profissionalista (ELSP - 1937);
segundo, a entidade política (APB - 1938); terceiro, o fórum de
discussão profissional (CBBD - 1954); quarto, a entidade de
representação acadêmica das escolas e docentes (ABEBD - 1967);
quinto, a entidade de organização da pós-graduação e pesquisa em
Ciência da Informação (ANCIB - 1989), etc. Essa ação
expansionista constante que começa no ambiente de ensino, que se
desdobra na ação política, cria a continua discussão sobre a
revisão de currículos de ensino de graduação; cria sucessivamente
entidades de representação, cria uma entidade própria para pensar
sustentadamente a pós-Graduação (ANCIB) expressa pela continua
renovação e ampliação do número de GTs, para mim, em parte, não
confirma que haja a zona de conforto como uma totalidade na qual
habitam os bibliotecários brasileiros. Admito que houve e há no
âmbito mais estrito da ação política uma zona de conflito, na
medida em que um dos momentos importantes para dar fluxo ao mundo da
vida, a comunicação, parece ser permanentemente bloqueado.
Eu,
juntamente com poucos colegas, temos feito um grande esforço em
manter vivo o interesse na pesquisa das temáticas: educação,
profissões da informação, ética profissional, mundo do trabalho,
etc. cujos pesquisadores se reúnem no GT6-ANCIB e ali relatam suas
sínteses. Por força desse esforço, percebemos a partir de 2007
que havia um grande problema a ser enfrentado: a fraqueza das
entidades profissionais de bibliotecários, arquivistas e museólogos,
decorrente de uma quase inexistente interlocução entre elas. Essa
ausência de interlocução ou conexão as impede de aproximar
discursos e defender causas de interesse comum em benefício da
sociedade brasileira. Em 2009, surgiu o Fórum das Entidades da
Biblioteconomia e Ciência da Informação no Brasil – Fórum
EBCIB, como espaço parlamentar, livre, não formal, sem estrutura
burocrática, a fim de promover a reunião das entidades para fins de
conversação e encaminhamentos de ações. Para isso, se esperava
que as entidades, ao terem que se expor entre si promovessem
internamente uma dinâmica de renovação de laços e de debates
entre seus membros.
Tal
expectativa, de minha parte, foi inspirada na Teoria do Mundo da
Vida, pela compreensão de que a comunicação é de fato, como
postula aquela Teoria, a condição inicial para o trabalho, para a
vivência cotidiana e para a inserção na realidade, bem como para
construir a transformação dessa mesma realidade.
Em
outubro de 2012, por ocasião da IV Reunião do Fórum EBCIB, no Rio
de Janeiro, foi dito aos mais de 20 participantes presentes, entre
representantes da Arquivologia, Biblioteconomia e Ciência da
Informação, que o Fórum EBCIB, a exemplo da Associação de
Bibliotecários Uruguaios e a exemplo da FESABID espanhola, que o
fazem em seus países, poderia chegar à condição de estimular a
elaboração e entrega aos candidatos em campanha para a Presidência
da República brasileira em 2013-2014, de um documento que
representasse a proposta conjunta das entidades atuantes na área de
Informação no Brasil. Isso para vir a acontecer requer a construção
de convergências num curtíssimo prazo. Não sei se conseguiríamos
ao menos ter acordo quanto ao valor desse objetivo!
Para
concluir, não creio que os bibliotecários estão em uma zona de
conforto, pois isso implicaria ter que assumir como verdade que eles
estão a agir intencionalmente nesse sentido negativo.
Penso
que há na realidade factual um espaço de tensão no âmbito
político da profissão ao qual poder-se-ia chamar de zona de medo,
indeterminação e, em certas circunstâncias, uma grande zona de
recuo. Isto, quando se interpreta as manifestações de alguns
profissionais, pode-se ter a seguinte representação verbal: fui do
movimento político profissional, não quero mais sê-lo ou serei
somente do meu jeito. Esse não é, certamente, um discurso que
remete à zona de conforto e nem é de inconsciência profissional.
É, simplesmente, uma ruptura de comunicação!
Muito
obrigado.
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