07/03/2013

Por que bibliotecários, arquivistas e museólogos brasileiros precisam pensar pequeno? [Março/2013]




De volta! 2013 está começando com muitas questões.


Uma dessas questões toma a forma de um discurso ambíguo, que a título de defender a otimização dos recursos universitários, visando baratear economicamente a formação de arquivistas, bibliotecários e museólogos, gera um viés que avassala a discussão nessas profissões, dando a entender que o caminho é sua unificação a partir da  sala de aula. De outro, alguns formuladores desse discurso ambíguo tendem a sustentar que a eventual teoria produzida pelas pesquisas em Ciência da Informação serve como suporte para incrementar as inovações necessárias à atuação profissional e às demandas do mercado de trabalho de arquivistas, bibliotecários e museólogos. Isso não está cabalmente demonstrado, na medida em que esses profissionais dependem de muito mais embasamento que aquele dado pela miscelânea temática, teórica e metodológica que constitui a Ciência da Informação.

Um dos argumentos que vez ou outra é apresentado é de que nos anos setenta do século XX a Unesco teria defendido a ideia dessa convergência. Mas não é dito que esse esforço da Unesco não teve o vigor e a aceitação pretendidos. Tratou-se de um discurso construído no ambiente econômico e político que levou à institucionalização da União europeia, à unificação da moeda, à convergência de uma comunidade econômica. Foi, portanto, um discurso que de seu lado contribuiu com todos os demais discursos que deram forma aos defensores da globalização econômica, barateamento do estado, homogeneização cultural, sucateamento das profissões, reestruturação da universidade que, na Europa, passou a ser engessada pelo Tratado de Bolonha, visando apressar e baratear a formação em nível superior.

É essa filosofia do pensar grande econômico que propõe que profissões do universo da cultura pensem pequeno e, se possível, considerem que seus espaços de ação profissional tendem a se tornar caros e, portanto, passíveis de destruição e integração entre si.

Eu não defendo que esse discurso deveria ter validade na Europa e muitos europeus também não o defendem. Houve e há muitas reações negativas a ele. A sua ênfase está presente no esforço dos governos pressionados pelos setores das finanças em assumir como inescapável o minimalismo estatal. Essa peroração circunstancial cada vez mais presente em muitos países da zona do Euro chega ao Brasil e aqui é menos defensável ainda. Se na Europa a cultura escrita, de alcance público em benefício de grande parte da população, tem séculos de existência; se na Europa a Universidade está estabelecida desde o final do século XII, no Brasil a universidade se estabelece no primeiro terço do século XX, com mais de sete séculos de distância e ainda hoje, século XXI, não dispomos de políticas culturais para arquivos, bibliotecas e museus. Nesse caso, como falar, sem corar, um discurso que sugere unificação da formação e da atuação profissional nesses campos?

Apenas para situarmo-nos em nossos déficits de cidadania, enquanto o movimento sindical europeu é forte desde os anos do século XVIII e tem suas raízes em corporações de ofícios do século XII, no Brasil as questões dos trabalhadores urbanos até o início dos anos trinta do século XX eram tratadas pelo Ministério da Agricultura. Isto quer dizer, mais ou menos, que até quase metade do século XX o trabalhador brasileiro era tratado como gado, literalmente. Embora hoje a classe trabalhadora do país tenha avançado em suas condições de cidadania, a defesa de uma ideia no sentido de que profissionais de arquivos, bibliotecas e museus podem ser formados em uma mesma escola, com uma formação unificada, é retroceder no tempo e tratá-los como destituídos de uma percepção de que a história das profissões se faz pela segmentação e não pela unificação. E isso se faz assim, justamente pelo fato de que é na prática profissional que os fatores de complexificação se manifestam e exigem especialização cada vez mais profunda de conhecimento teórico e aplicado.

Nesse sentido, desconsiderando a questionável defesa de barateamento econômico da formação desses profissionais, esse discurso ambíguo (que quer dizer algo, mas teme fazê-lo de cara limpa) deve ser recusado. De outro lado, é relevante observar que ele não é feito e nem defendido pelos profissionais já estabelecidos nesses campos que têm a clara noção das dimensões de suas profissões; que têm uma visão ontológica, teleológica, axiológica e epistemológica de suas práticas históricas e de seus compromissos para o futuro. Esse discurso, em geral, é feito por ilusionistas acadêmicos que, tendo origem em outros campos profissionais, desejam impor a partir do espaço acadêmico visões de mundo que mesmo nos lugares onde essas ideias foram originadas há uma firme recusa em sua aceitação.

Para finalizar, não me parece que a questão se esgota sem uma profunda reflexão e debates honestos em que prós e contras referenciados no contexto social próximo sejam exaustivamente examinados. 

Ciência, religião, política e formação de arquivistas e bibliotecários: lendo Nietzsche com Safranski [Dezembro/2012]

Rudiger Safranski é um leitor de Nietzsche. Como leitor de Nietzsche ele publicou um magnífico livro sobre esse grande pensador do século XIX. Com tradução de Lya Luft e publicado pela Geração Editorial em 2011, está na praça em nova impressão neste ano de 2012. O livro: NIETZSCHE: biografia de uma tragédia, com 363 páginas.

Não contarei nada sobre o livro, do qual recomendo a leitura. Entretanto farei a transcrição de um trecho, para mim relevante, por nele encontrar uma das explicações possíveis para o que está acontecendo com os encontros de estudantes de Biblioteconomia, Arquivologia, etc, no Brasil.

Esses eventos, há décadas, deixaram de ser um espaço de congraçamento e debate político, sendo cada vez mais um ambiente de congraçamento, pois felizmente não se extinguiram os momentos de festas, mas empobrecido ou destituído do debate político. O debate político (quem questiona sua necessidade nos encontros de estudantes?) é cada vez mais fortemente substituído (legitimamente?) pelas seções de apresentação de “trabalhos científicos?”, com direito, estes, a serem objetos de seleção após submissão a processo de avaliação rigorosa.

Não tenho nada contra a que os graduandos tenham espaço para a apresentação do resultado de seus trabalhos de iniciação científica, PET, etc., mas isso não poderia ser feito, por exemplo, no espaço de um ENANCIB JOVEM? Perguntando de outra forma, por que no evento anual da Associação Nacional de Pesquisa em Pós-Graduação em Ciência da Informação e Biblioteconomia (ANCIB), onde são apresentados os resultados de pesquisas realizadas nos Programas de Mestrado e Doutorado (em Ciência da Informação, Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia), bem como a produção de pesquisadores não vinculados a esses Programas, mas filiados à ANCIB, não se poderia oportunizar o encontro de Doutores, Mestres, Mestrandos, Graduados e Graduandos, interessados em pesquisa, uma vez que estariam unidos pelo fino propósito dessa religião da era moderna: a Ciência? Sim, a Ciência.

Em A gaia ciência Nietzsche esclarece, aos seus leitores, porque do seu ponto de vista se precisaria de outra ciência, que não esta que ai está realizada como dever. E que como dever, como religião, tem seus papas, papisas, sacerdotes, iniciações, etc. Não poderia ser a ciência, aliás, os cientistas laicos?

Pois bem, a transcrição de trecho do texto de Safranski, melhor esclarece, em parte, o que isso quer dizer. E, por isso mesmo, creio que nesse espaço religioso de uma das seitas científicas estabelecidas: a Ciência da Informação poderiam estar todos os chefes, os sacerdotes, os crentes e mais os aspirantes ao ingresso nessa seita. Com isso, o espaço mais puro da política poderia ser restaurado, dentre os estudantes de Biblioteconomia, Arquivologia, etc. em seus EREBDs e ENEBDs... Não é algo para pensar?

Eis a fala de Safranski (p.110-111):

Para o pensamento filosófico, no começo da era industrial, as dimensões duradouras do Ser, isto é, Natureza e História, começam pois a transformar-se numa espécie de máquina. A essas “máquinas”, pensam os otimistas entre os contemporâneos de Nietzsche, podemos confiar a produção da vida bem sucedida, sob o pressuposto, todavia, de que nos portemos conforme nossas funções. A transformação do “processo mundial” hegeliano em funcionamento mecânico e dispositivos industriais foi descoberta por Nietzsche, com fina sensibilidade, em seu território mais próximo, a ciência filológica. Formamos os jovens para os levar ao mercado de trabalho científico, lá colocamos cada um diante de um tema e um probleminha pequeno para que ele o trabalhe diligentemente, o todo é uma fábrica científica; não sabemos para que o produto de diligência servem; em todo o caso, eles dão sustento ao seu produtor. Na descrição dessa situação, Nietzsche para em um momento e recorda seu uso linguístico: mas involuntariamente aparecem em nossos lábios as palavras “fábrica, mercado de trabalho, oferta, aproveitamento” – e todos esses auxiliares do egoísmo – quando queremos descrever a mais recente geração de intelectuais.  

Bom, quero reiterar que concordo com a forma como Nietzsche interpretou a modernidade ocidental, sobretudo, estando na Alemanha onde, pela primeira vez na história desta parte do planeta foi contratado em uma universidade um profissional a titulo de cientista. No seu modo de ver, se chegou ao estágio de transformar o pensar e a razão em coisas tratáveis como “objetos” ordenados em linha de produção, partilhando em etapas de diferente complexidade. É isso que está retratado. Isso não se trata de ilusão, é fato. Eu, na atual condição de docente, orientador de TCC, de dissertações e teses reproduzo isso. Sou, portanto, um dos crentes dessa religião; não quero ver-me como sacerdote; sobretudo, sou um dos produtores referidos por Nietzsche e vivo dessa produção. Portanto, não é contra isto que lanço a questão.

A pergunta que faço é: todos os espaços onde acadêmicos se reúnem a qualquer título  devem estar submetidos ao controle do fazer científico? Somos todos, em todos os momentos, somente peças dessa grande máquina, submetidos à estreiteza da produtividade, do produtivismo e, assim, comprometidos com a (de)formação dos espaços políticos, para que os estudantes saiam da graduação desviados da política?

Não creio que possamos, impunemente, deixar de perguntar algo sobre isso, especialmente, nós formadores de bibliotecários, arquivistas....

SALVE 2013!


O bibliotecário brasileiro despreza conscientemente o Código de Ética do CFB? [Novembro/2012]




No início do mês de outubro deste ano estive em uma Escola/Curso de Biblioteconomia em uma das capitais da região Nordeste do Brasil. Nessa oportunidade, proferi uma breve palestra sobre o ensino da ética profissional bibliotecária. O auditório contava com quase duzentos estudantes de bacharelado em Biblioteconomia. A plateia estava constituída por estudantes de todos os semestres, incluída a turma dos recentemente  ingressos. Dá para dizer que uma parte significativa dos presentes já teve a chance de ouvir falar sobre o Código de Ética do Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB). Entretanto, nesse Curso não há uma disciplina específica sobre o tema e quando da colação de grau os formandos não prestam o juramento sugerido pelo CFB. Com isso, momentos importantes para a fixação de preceitos de ética profissional e valorização do Código de Ética do bibliotecário deixam de ser propiciados aos egressos dessa instituição. A certa altura da preleção, pedi para os presentes manifestarem-se levantando o braço quando tivessem lido o Código mais de uma vez. Ninguém se mexeu. Depois, pedi para que levantassem o braço aqueles que leram o Código ao menos uma vez. Houve uma única manifestação.

Dias antes de ir a essa instituição eu fiz uma busca no site de sua Biblioteca Universitária. Trata-se de uma universidade pública de médio para grande porte. Ao verificar as informações administrativas dessa Biblioteca, que exerce a coordenação de um sistema de bibliotecas, encontrei menção a sua missão e aos seus valores. Entre os seus valores pude ver que se inclui a Ética. Cliquei o mouse sobre o link “ética” e esse me remeteu ao Código de Ética do Servidor público federal.

Ao confrontar os dois momentos surgiu-me a dúvida ora transformada em título desta coluna:  o bibliotecário brasileiro despreza conscientemente o Código de Ética do CFB?

Por que em uma BU, mesmo existente como parte de uma Universidade Federal, composta como um sistema integrado por várias unidades e onde atuam dezenas de bibliotecários, esses bibliotecários não se posicionam como profissionais bibliotecários antes que como funcionários do Estado? Em que sentido eles veem que se identificar coletivamente através do site da Biblioteca como praticantes da Ética do servidor do Estado é mais valioso do que se identificar pela ética de sua profissão? São essas pessoas, de fato, crentes de que detém uma identidade profissional constituída a partir da academia? Será que essas pessoas veem o valor do que executam profissionalmente com tanta indiferença, que será mais valioso cair na vala comum da aceitação e enunciação de uma identidade profissional tão inexpressiva, quando comparada com aquela que é dada pelo seu diploma e sua carreira profissional? Será que essas pessoas não percebem que antes de serem funcionários estatais, somente ingressaram no serviço público através de um concurso que exigiu o título de bacharel em Biblioteconomia e o registro no Conselho Regional de Biblioteconomia?

De outro lado, será que de fato esses bibliotecários têm a consciência de que sua postura é de completo abandono dos ideais de sua profissão?

Houve um momento neste país, nos anos da década de 1990, em que a regulamentação de algumas carreiras profissionais foi objeto de ameaça. A tentativa governamental caminhava no sentido de desregulamentar as profissões e a de bibliotecário estava entre elas. Conselhos profissionais de várias categorias se mobilizaram e tal evento não se deu. Numa situação desse tipo, é provável que esses bibliotecários, por não se identificarem publicamente como bibliotecários aplaudissem uma intervenção dessa natureza. Entretanto, se isso ocorrer eles seriam meramente servidores públicos como outros quaisquer. Ao afirmar isso não pretendo dizer que os servidores públicos não são bem representados por esse Código de Ética. O que estou tomando para reflexão é o fato de que grande parte das ocupações no Serviço Público é realizada por pessoas cujo ingresso não se deu pelo perfil de uma profissão autônoma e regulamentada. Nesse caso seu Código de Ética é mesmo dado pelo vínculo: servidor público. Porém, no caso de pessoas cujo ingresso no serviço público deu-se pelo perfil de uma profissão autônoma e regulamentada é desarrazoado não se identificar pelo Código de Ética de sua profissão, quando de seu relacionamento com o público.  

Diante da situação exposta, não creio, imediatamente, que o bibliotecário brasileiro despreza conscientemente o Código de Ética do CFB. Credito esse tipo de acontecimento a alguma falha na formação que essa universidade está oferecendo aos seus estudantes de Biblioteconomia. Mas também suponho que há alguma leniência do próprio Conselho Regional de Biblioteconomia, da respectiva região, quanto ao alcance da fiscalização exercida sobre essa Biblioteca Universitária e seus bibliotecários. Em minha leitura a situação descrita vem em prejuízo da imagem profissional do bibliotecário e, por isso, pode afetar a dignidade profissional dessa categoria.