26/11/2012

Saudação à criação da Revista Científica da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique)


A comunicação científica e a questão da investigação científica e das comunidades científicas para a consolidação da ciência no País  

Francisco das Chagas de Souza
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, Brasil

Palestra proferida na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), por ocasião do lançamento da Revista Científica da UEM, em 23 de novembro de 2012, em Maputo, Moçambique.


Permitam-me iniciar  com um conceito amplo de ciência. Para mim, ciência, para além de um estágio avançado da construção do  conhecimento humano, o último estágio da filosofia, como diz Cassirer em seu Ensaio sobre o homem, trata-se de um bem econômico vital de uso local, entendido esse ambiente local como um país, com o propósito de dar suporte ao bem estar dos povos que constituem as nações e que, simultaneamente, serve de base para a competição econômica internacional.

Diferentemente dos insumos naturais que se utiliza em estado de extração numa economia primária agropastoril, cujo ciclo produtivo condiciona o homem ao seu ritmo natural ou num estágio de transformação numa economia secundária industrial, em que o homem condiciona a natureza, submetendo-a ao seu projeto, a ciência exige do homem que construa a teoria que lhe levará a submeter a teste de veracidade o objeto eleito para exame. Essa noção de três tempos distintos, historicamente constituídos e atualmente em regime de convivência dado pelas circunstâncias locais de comunidades singulares, formulada pelo filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, aponta para o fato de que se pode pensar a ciência como correlata ou descendente de processos complexos de vida e existência assegurados por uma boa educação de base, ou melhor, por processos através dos quais a coletividade se concerta no sentido de reunir os meios materiais constitutivos das condições que contém todos os requisitos para a preparação cotidiana  de um estado de aprendizagem capaz de levar as pessoas a viver um sentimento de vivacidade e independência intelectual.

Em minha concepção, portanto, a ciência não pode ser tomada como uma erupção natural, um simples fenômeno volitivo ou uma explosão metafísica. Ela é parte da vontade de poder, decorrente do desenrolar de nossa vida, que nos leva à produção da realidade como o resultado de nossa comunicação como seres cujas concretudes se constituem linguageiramente, dialogicamente, comandadas pela pedagogia da existência. Por isso mesmo, por essa mesma fonte constitutiva, a ciência pode ser tomada como mais um dos espelhos a refletir os desejos que formulamos pelo sentimento de que somos descendência que gera descendência e, assim, que somos capazes de construir todos os possíveis futuros que ousamos desejar. A isso somos  premidos pela visão de que os mundos das nossas vivências (Schutz; Luckmann, 2003), quando nos vemos como coletivos individualizados ou como indivíduos singulares, não podem desconhecer os mundos concretos de nossos irmãos humanos igualmente como coletivos ou indivíduos que, por seus ambientes, mais áridos, mais tropicais, mais temperados ou mais primitivos ou cultivados  nos oferecem a possibilidade de cooperar andando juntos, ou cooperar em conflito, numa compreensão que partilhando com Norbert Elias, poderemos chamar de processo civilizador. É, justamente, nesse sentido, que não enxergo hoje a ciência que, destinada à produção da  riqueza econômica, moral e política para cada uma de nossas nações, estados, povos,  não aplique os seus conhecimentos operativos próprios, os procedimentos que os cientistas vêm construindo sempre, e sempre mutáveis, para compreender como as realidades locais, cooperando com os contextos externos são parte de um tecido global, chamado existência humana.  Essa ciência, então, no plano local aparentemente precisa partir de dois eixos:

a)      Uma Política nacional de CT e inovação, que aponte para as metas desejáveis de desenvolvimento humano e crescimento econômico. Previsão e provisão  de financiamento sustentável em longo, médio e curto prazos, diálogo internacional com as fontes de apoio e com as matrizes científicas mais avançadas, em interação e interlocução contínuas.

b)      A constituição, apoio e consolidação de comunidade científica capaz de mapear as tendências adequadas  e atuar visando à inserção internacional do país sem descurar da resolução dos problemas materiais nacionais em que o conhecimento científico de base local e o conhecimento internacional absorvido e adaptado possam contribuir para uma ascensão sustentável aos melhores padrões de vida que a sociedade local queira desejar e conquistar.

Mas essa comunidade científica é constituída no seio da sociedade, como uma das forças estruturantes  do estado para atuar visando o bem das nações e dos povos que integram este estado assentadas em seu território e não para dar suporte às outras forças do estado com poder  intervencionista cuja vontade supera a vontade da sociedade que a constitui, remunera e financia as suas atividades. A ela cabem responsabilidades que são determinadas pela sociedade que a estabelece, mas que, em geral, olhando para as experiências exitosas de outras sociedades, e atuando como elemento de diálogo, provavelmente se dedicará a objetivos como:   

a)      Propor estratégias apropriadas para a formulação da Política nacional de CT e inovação, interagindo com o estado e com o empresariado no sentido de produzir a reflexão sobre as convergências dos vários interesses que podem culminar com a inclusão de todos os membros da sociedade nos benefícios advindos da transformação do conhecimento científico em renda econômica e bem estar material.

b)      Pensar e propor as estratégias de articulação da execução da Política nacional de CT e inovação com uma Política nacional de educação e uma política nacional de ação universitária, voltada à geração do conhecimento científico e tecnológico.

c)      Buscar os meios concretos e com o mais amplo apoio social visando implantar, consolidar e inovar a estrutura universitária do país tendo em vista ser o ensino superior e, especialmente, a universidade,  um lugar de exercício dos papéis de:  guardiã das tradições filosóficas e culturais do país;  formação de recursos humanos para atuação no exercício das profissões oficiais resguardadas em corporações próprias;  formulação e execução de estratégias de desenvolvimento de ciência, tecnologia, inovação e experimentação e produção de protótipos industriais, etc.;  prestação de serviços, estendendo seu conhecimento a solução de problemas manifestados em pequenas vilas, comunidades ou povoados, dentre outros.  
d)      Organizar o processo de produção do conhecimento científico e executá-lo como parte da operacionalização dos papéis  já referidos nos itens “c” e “d” acima como atributos da universidade, assim como de institutos de pesquisas científicas estatais ou privados.

e)      Difundir nacional e internacionalmente o conhecimento científico produzido, fomentar o patenteamento da tecnologia e inovação de valor econômico, colaborando para o país interagir em um mercado internacional e estender o conhecimento de tecnologia social para as populações locais.

Esse último objetivo apontado, particularizando a difusão nacional e internacional do conhecimento científico produzido, implica na construção de um forte sistema nacional de ICT a congregar instituições e estratégias com alguns componentes básicos, de custo alto, mas de retorno econômico seguro e vantajoso.  

A experiência internacional nesse sentido vem se consolidando nos dois últimos séculos nos países economicamente desenvolvidos e, com o advento das recentes tecnologias de comunicação da informação, especialmente da Internet, vem se acelerando nos últimos trinta anos nos países em desenvolvimento, particularmente, nesses denominados de economia emergente, dentre os quais se podem distinguir os BRIC (Brasil, Índia, China e África do Sul). 

Esses componentes básicos que favorecem a difusão nacional e internacional do conhecimento científico ficam claramente perceptíveis no segundo Relatório quinquenal da UNESCO sobre a Ciência, editado em 2010, com uma profunda análise do ambiente internacional, consolidando dados do período de 2006 a 2010.

Eles envolvem, dentre outros, 
a)      A Pós-graduação (+ graduação + educação secundária + primária)
b)      O evento científico
c)      O periódico científico

Sobre o periódico científico, pode-se afirmar que é o centro de todo o processo chamado  comunicação científica. Sem a sua criação, a ciência como um bem econômico vital de uso local não teria atingido a culminância de um grande tecido internacional, a correlacionar com menor ou maior intensidade o conjunto das nações, seus países e seus territórios, num progressivo enredamento.  

Ao mesmo tempo, como qualquer outro bem que adquire contornos econômicos concorrenciais, a comunicação científica pode ser capaz de distinguir o que é local, de um país e de uma região e, com isso, demonstrar o valor desse bem local no diálogo mundial.

Para exemplificar, com o material disposto no já mencionado Relatório quinquenal da UNESCO sobre a Ciência, de 2010, podemos ver a partir dos dados do Science Citation Index (SCI)  ali examinados, quais os assuntos que predominam nos países ou regiões, os idiomas predominantes na produção da ciência, a interação entre grupos de pesquisa e a colaboração internacional, o crescimento do número de artigos científicos publicados  e, com isso, prospectar as tendências que certos segmentos temáticos de interesse da comunidade científica, ainda que partindo do local, apontam para a formação de núcleos de uma comunidade científica internacional.

Nesse sentido, a Revista Científica da Universidade Eduardo Mondlane, surge como parte de um movimento mundial de apropriação de novos recursos de edição e distribuição do conhecimento inicialmente produzido pela comunidade científica de Moçambique, mas que, à semelhança das experiências que vemos se desenvolver no Brasil e outros países, será mais um dos espaços de integração dos povos moçambicanos com todas as outras nações que, pela Ciência, se aliam no esforço de fazer a realidade vivencial humana cada vez melhor. 

Contudo, como todo empreendimento humano, uma publicação científica contém perigos inerentes ao próprio processo que atinge os periódicos locais e internacionais, dos quais o mais insidioso é o plágio.
A esse propósito, com o título “Epidemia de fraude na ciência?”, o site do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à pesquisa (Brasil) [http://www.confap.org.br/epidemia-de-fraude-na-ciencia/] , noticiou em 8/10/2012, que:

O fantasma da fraude voltou a assombrar a comunidade científica nesta semana. Desta vez, não foi um caso específico.
Uma análise robusta da literatura biomédica mostrou que a má conduta nesse meio é mais comum do que se imaginava – ou se fazia crer.    
Em estudo publicado na segunda-feira (01/10/2012) na revista PNAS [Proceedings of the National Academy of Sciences], pesquisadores dos Estados Unidos apresentam os resultados de uma revisão detalhada de 2.047 artigos da área biomédica e de ciências da vida – indexados na base PubMed – que foram ‘despublicados’ entre 1977 até maio deste ano [2012]. [...]
Geralmente as despublicações são atribuídas a erros não premeditados. Nesse caso, no entanto, estiveram associadas, sobretudo, a desvios éticos (67,4%), entre eles fraude ou suspeita de fraude (43,4%), publicação duplicada (14,2%) e plágio (9,8%). Os erros em si não responderam nem por um quarto das ocorrências (21,3%)”.

Esse perigo atinge aos editores científicos, avaliadores/revisores, instituição que empresta sua marca ao periódico. Isso, mais que um aspecto estritamente moral é resquício daquele componente da conduta humana que tanto Aristóteles, no seu texto Ética a Nicômaco, quanto Freud, em seu texto O mal estar na cultura, se referem, ou seja,
os adultos normalmente apenas se permitem fazer o mal que lhes promete vantagens quando estão seguros de que a autoridade nada saiba a respeito ou que nada lhes poderá fazer, e o seu único medo é de serem descobertos”. (FREUD, p. 147).

Tal situação é provocada pela competição que tem seus componentes econômicos evidentes, dado que o montante mundial de investimento em pesquisa e desenvolvimento ultrapassa anualmente a cifra de hum trilhão de dólares. Quanto à comunicação científica, há um  mercado comercial de revistas científicas que nem sempre vem em benefício direto aos autores e às universidades que os empregam, especialmente quando se trata da cedência de sua produção às editoras comerciais. De fato, trata-se de um mercado composto por: 1 - editoras comerciais, 2 - sociedades científicas e 3 – editores independentes aí incluídas as universidades. As editoras comerciais movimentam números astronômicos. Somente para exemplificar, com dados tratados por Guanaes e Guimarães (2012):
Em 2010, a Elsevier registrou um lucro de 1,16 bilhão de dólares, numa receita de 3,23 bilhões de dólares, o que equivale a 36% de margem de lucro [...]. Os conglomerados editoriais Elsevier, Springer e Blackwell detêm 42% do mercado de publicações científicas.
Esse mercado está estimado em US$ 7 bilhões anuais, considerando apenas o que é editado para pesquisa em ciência, tecnologia e medicina no idioma inglês. (Guanaes e Guimarães, 2012).
Cabe considerar que o insumo básico do produto vendido por essas editoras é composto por
2,5 milhões de artigos científicos avaliados por pares e cedidos por seus autores, sem qualquer pagamento [...]. Essas editoras publicam esses milhões de artigos anualmente em 25 mil periódicos científicos [dos quais e Elsevier é titular de mais de 2.000 títulos].  (Guanaes e Guimarães, 2012).

Para proteger a qualidade de sua produção contra o plágio a comunidade científica já desenvolveu vários recursos que estão à disposição dos editores.

Para se proteger da exploração econômica de seu trabalho intelectual e proteger as suas universidades, sobretudo as mantidas com recursos públicos, a comunidade tem buscado meios, através do movimento em torno do acesso livre ao conhecimento publicado.  E novamente poderá buscar sensibilizar os fundos públicos para assegurar que a sociedade possa aceder diretamente a essa produção. No caso brasileiro, o CNPq e a CAPES têm colaborado continuamente nesse sentido. Até [o último] 20 de novembro, ficaram abertas as inscrições para uma chamada pública cujo  objetivo foi incentivar a editoração e publicação de periódicos científicos em todas as áreas do conhecimento no país [...], dando prioridade de apoio às revistas divulgadas por meio eletrônico, na internet, em modo de acesso aberto, ou nos formatos impresso e eletrônico simultaneamente. O montante de recursos disponíveis é de R$ 6 milhões [para aplicação em 2013]. (CNPq. Assessoria...)

Claro que esse tema é muito vasto, mas preciso, pelo tempo que me foi dado, encerrar esta fala que apenas abriu  algumas questões, desejando o melhor sucesso à comunidade científica de Moçambique, à Universidade Eduardo Mondlane, bem como aos editores da Revista Científica da UEM.

Muito obrigado!  


Fontes referidas:
Aristóteles (383-322 a. C.). Ética a Nicômaco.  In: Aristóteles. Vida e obra. Trad. e notas de Pinharanda Gomes. São Paulo: Círculo do Livro, 1996.  p. 117-320.

Cassirer, Ernst. Ensaio sobre o homem; introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 391 p.

CNPq. Assessoria de Comunicação Social. Publicações científicas recebem apoio financeiro. Disponível em: http://www.confap.org.br/publicacoes-cientificas-recebem-apoio-financeiro/. 29/10/2012.

Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Brasil). Disponível em: http://www.confap.org.br.
Elias, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1993. v. 1. 271p.
Elias, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. v. 2. 307p.
Flusser, Vilém. Filosofia da caixa preta; ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. 108 p.
Flusser, Vilém. Pós-história; vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas cidades, 1983. 168 p.

Freud, Sigmund (1856-1939). O mal-estar na cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2011. 191 p.
Guanaes, Paulo Cezar Vieira;  Guimarães, Maria Cristina Soares.  Acesso livre: uma nova crise no horizonte? ComCiência, 10/06/2012. Disponível em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=79&id=971
Schutz, Alfred; Luckmann, Thomas. Las estructuras del mundo de la vida.   Trad. Néstor Miguez, 2003. 314 p.  
Unesco. Relatório UNESCO sobre ciência 2010; resumo executivo - O atual status da ciência em torno do mundo. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001898/189883por.pdf

11/10/2012

O que a nós, bibliotecários do MERCOSUL, não importa não saber! [Outubro/2012]


De 03 a 05 de outubro de 2012 ocorreu em Montevidéu, capital do Uruguai, o 9º. Encontro de Diretores e 8º. de Docentes das Escolas de Biblioteconomia e Ciência da Informação do MERCOSUL. No evento, estiveram presentes mais de 200 participantes oriundos da Argentina, Brasil, Chile, Venezuela e do país anfitrião.

A discussão foi ampla. Em alguns momentos, sobretudo no grupo cujo tema tem relação com meus interesses de estudo e, portanto, do qual participei, isto é, o Grupo 1, que trata dos Fundamentos Teóricos, brotaram dois aspectos que me parecem relevante considerar. Um deles é a referência a uma latinoamericanidade que, de praxe, não é propriamente discutida, mas tomada como uma realidade dada. O outro, que é discutido, mas por um caminho estranho, é afundamentação tomada para suportar teoricamente a Biblioteconomia e Ciência da Informação praticada, ensinada, aprendida e pesquisada nessa sub-região da chamada América Latina.

Neste texto, abordarei um pouco, como vejo esses dois aspectos da discussão, a partir de como a percebi durante o evento, e sempre considerando os limites do meu lugar de observação, ou seja, o Grupo 1 (Fundamentos Teóricos).

O que significa para todos nós a latinoamericanidade? O fato de constituirmos um ambiente geográfico conformado sobre um território invadido desde o século XVI por Espanha, que sempre reivindicou a sua maior parte e por Portugal, que sempre procurou avançar sobre sua maior parte, seria suficiente para dar o caráter latino, especialmente pelo fato de Espanha e Portugal terem idiomas predominantes de tronco comum? Terem sido lugares de ocupação romana por vários séculos? Terem sido lugares de domínio comum das mesmas famílias imperiais? Creio que traços como esses não são suficientes para marcar a latinidade! Mas entra na expressão também a americanidade. E a americanidade, tal como a latinidade, não é uniforme. Nesse território onde se daria a latinoamericanidade, invadido durante esses cinco últimos séculos, percebe-se na constituição das populações nativas, que o ocupavam anteriormente à chegada dos navios Espanhóis e Portugueses, a presença de centenas de nações e línguas; um número não pequeno de práticas místicas e religiosas; diferentes conhecimentos práticos que levam à formação de distintas técnicas e tecnologias construtivas, alimentares, vestuárias, etc.

Além de tudo isso, é de considerar-se que tanto latinidade quanto americanidade, para além de domínios linguísticos, místicos, religiosos, técnicos e tecnológicos expressos pelos povos que os cultivam, se definirá por outros aspectos, especialmente, por arte e ciência. Portanto, a percepção que se manifesta sobre a latinoamericanidade expõe e confirma uma das teorias da fenomenologia social, construída por Alfred Schutz, que, a despeito de sermos profissionais ou cientistas ou acadêmicos somos, como as demais pessoas, dominados pelo mundo da vida cotidiana, isto é, pela realidade a qual dá conformidade à nossa existência. Por essa razão, então, quando durante o evento se arguia em torno de um terreno comum – alatinoamericanidade -  isto vinha, inteiramente, de uma fundamentação intuitiva, completamente não científica, mas num ambiente onde estavam a discutir um tanto de cientistas da sociedade. Falavam como todas as demais pessoas, como todos aqueles com os quais se convive no grande grupo humano. Mas um primeiro aspecto estava sempre presente, falavam  como nacionais dos países ali representados, e isso ficava muito claro quando alguém comentava algo do tipo: vocês do Brasil têm características ou tradições A, B ou C. Ou  vocês do Uruguai têm características ou tradições D, E ou F, etcIsto é, pelos valores culturais, somos sem muitas dificuldades demarcados em muitos aspectos e por ai se esvai a latinoamericanidade como um singular.

No transcorrer do evento, lembrei-me dos textos do Gilberto Freyre, reunidos em antologia organizada por Edson Nery da Fonseca, sob o título China Tropical e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira. [Editora UnB, 2003, 240 p.].  Penso que ao inserir na apreciação as reflexões, relatos e descrições do autor pernambucano - um dos precursores das Ciências Sociais no Brasil - posso colocar a questão de até onde o Brasil cultural se assemelha com todos os demais países de ascendência espanhola que se encontram no vasto território estendido da América do Norte, passando pela América Central até chegar à Terra do Fogo?

Eu não desconsidero que a maioria dos presentes tenha a noção de que essalatinoamericanidade singular não existe, pois os considero gente que reflete, embora demonstre uma reflexão reificada, para tomar uma expressão de Serge Moscovici, um dos grandes estudiosos das Representações Sociais. Isto é, refletem mais sobre sua ciência, não dando, provavelmente, a devida importância à vida cotidiana.

De certa maneira, isso se confirma e me remete ao segundo aspecto que me propus a aqui tratar, qual seja o dos Fundamentos teóricos da Biblioteconomia e Ciência da Informação.

Uma das questões que ocupou parte significativa do tempo disponível no Grupo teve relação com as bases com que se constrói e que se ensina para a formação das competências profissionais de bibliotecários e cientistas da informação.

Ao longo de todo o debate foram manifestados vários equívocos, que se deram pelo  olvido das particularidades jurídicas de  cada país. Chamar a Ciência da Informação e a Biblioteconomia de campos profissionais no Brasil, considerando-as como duas atividades pelas quais se nomeia profissões não faz sentido. Primeiro porque ambas são, se se quer dizer assim, ciências, disciplinas ou doutrinas. Bibliotecário, neste país, é profissão consagrada em legislação própria e com lugar definido no mercado de trabalho. Cientista da informação não tem esse mesmo status, a começar pelo fato de que no rol das profissões confirmadas pelo mercado profissional não há clara presença de um profissional assim designado. O mais próximo dessa intenção responde pelo nome de Profissional da informação, que insere os profissionais arquivistas, bibliotecários e museólogos como parte. Outro elemento não menos significativo, presente em parte das intervenções, é a insistência em buscar os fundamentos da Biblioteconomia e Ciência da Informação simplesmente em suas respectivas epistemologias. Mas será que uma ciência se explicaria pelo seu próprio olhar? Por que não se pretender buscar os fundamentos filosóficos mais amplos, pelos quais a Biblioteconomia e Ciência da informação possam ser examinadas e compreendidas pelas suas respectivas naturezas (Ontologia) e finalidades (Teleologia) e depois disso virem a ser examinadas quanto aos seus processos de constituição como campo de conhecimento? Será que é sustentável o discurso do investigador e será que esse discurso sustenta adequadamente o campo em que ele atua e constrói quando afirma que esse campo deve ser compreendido como um campo de conhecimento por ser interrogado pelo modo como ele se faz, sem se indagar possíveis razões que promovem a sua aparição no contexto da realidade humana assim como o destino ou emprego desse conhecimento?

Me escuso, neste momento, em ampliar esta apreciação, porém a mim parece que nesse evento ficou evidenciado que a nós, bibliotecários do MERCOSUL, não importa não saber, o que se deve conhecer para constituir um campo de Biblioteconomia e Ciência da Informação que, de fato, possa transformar a nossa sociedade.

Considerando, por fim, que se tratou de uma reunião de docentes e diretores de escolas de Biblioteconomia e Ciência da Informação, meu sentimento ao final é de que no MERCOSUL, ao menos do meu lugar de observação nessa reunião, prevalece o domínio e o puro encanto com a face instrumental do conhecimento. Isso se reforça pela reivindicação, por fim aprovada, do retorno aos eixos temáticos que orientam o processo de formação acadêmica em Biblioteconomia das áreas temáticas de Tecnologia da Informação e Investigação, especialmente, pelo conteúdo dos argumentos apresentados para o retorno desta última.

Publicado originalmente em: http://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=709

10/10/2012

O que nos afeta, a nós, bibliotecários brasileiros? [Setembro/2012]


Nesta coluna, inicio o texto inspirado em trecho retirado de um dos livros  de  Gérard Fourez, que se tornará numa longa citação a ser feita mais adiante. Mas quem é Gerárd Fourez? É um cientista e filósofo que há muitas décadas vem refletindo e expondo suas ideias em torno de uma Filosofia do homem de ciência, de uma ciência humanamente compromissada e de uma ética no ensino das ciências. Há várias obras que já produziu e ainda está a produzir nos seus 75 anos de vida.

Mas a parte do livro de onde retiro a citação, isto é, o seu capítulo 12, está a debater as circunstâncias que circunscrevem a discussão em torno do que se define como uma das dualidades da questão ética, ou seja, a predominância da concepção idealista ou histórica da ética e sua implicação na tomada de uma decisão. Evidentemente, entendo eu, que se terá que tomar decisão ética diante de circunstâncias, que evocam valores. Esses podem ser de diferente natureza: religiosos, morais, econômicos, estéticos, ... Valores são  marcos/ marcadores/ representações, portanto, ideias que os participantes da discussão julgam os mais representativos para apreciar e deliberar sobre um conflito ético. Por isso, tende a ser tão complicado tomar a melhor decisão ética, quando os valores provêm de julgamentos nos quais os sujeitos envolvidos tomam como referência valores muito distintos.

Em uma sociedade, cujos valores predominantes passam a ser aqueles de  natureza econômica, subordinados, por isso, à ideia da escassez de recursos, a disputa por orçamentos, por salários, etc. tende a ampliar cada vez mais o individualismo. Embora se possa afirmar que há um discurso majoritário que apregoa o reconhecimento da força da filosofia comunitarista, a qual levaria à ideia de criar, manter e fortalecer associações profissionais, na medida em que uma vez unidos jamais seremos vencidos, o dia a dia mostra a prática distante do que é dito. Esse distanciamento se evidencia pelo que ocorre na discussão em prol da criação de entidades. Em geral, essa discussão afirma que novas entidades devem surgir porque as existentes não cumprem as suas missões. Mas, ao mesmo tempo, constituem-se em discursos que se negam as condições para que as entidades existentes sejam devidamente mantidas e funcionem conforme os interesses de seus instituidores. Os discursos pela criação de novas entidades não é capaz de dar quaisquer garantias de que essas mesmas pessoas que negam a filosofia comunitarista, na prática, consigam diferente resultado  com a gestão de uma nova entidade, eventualmente criada. Se criadas, as novas entidades que não morrem na infância de suas existências ficarão caducas como aquelas que serviram de motivadoras do discurso desestabilizante.

Provavelmente, não seria exagero afirmar que a noção de escassez (veja-se o ditado popular: quando o caldo é pouco, eu primeiro) tem se acentuado cada vez mais nos últimos cem anos, furtivamente inserida na propagação de uma filosofia individualista, hedonista no sentido hoje dado, antissolidária, de modo que até mesmo os movimentos de responsabilidade social se transformaram em meio importante de enriquecimento econômico das organizações.

A política de responsabilidade social empresarial e governamental se sustenta ao manter um modelo de economia que acentua o estimulo ao consumo, portanto, em reforço de valores atrelados a uma filosofia individualista.

Há quem afirme que os valores universais que se admite existentes, associados a uma ética das virtudes, foram sendo consolidados desde a pré-história pela mitologia e pela formação de uma cultura contemplativa que dá na formação das religiões. Então os valores que muitos pensam serem os valores – ideias de beneficência – mais resistentes por terem sido construídos em época muito remota se detinham no que era mais essencial: Amar ao próximo para manter a vida! O grande bem, pois todo valor visa à sustentação do maior bem, era a vida humana! Então, desse amar o próximo, derivam todas as fórmulas que, na sequência, expressariam os melhores valores morais ou da conduta: honestidade, justiça, honradez, lealdade... Toda a magnitude de valores hoje existentes na sociedade, com a predominância dos valores econômicos, parecem confirmar o que afirma Fourez, isto é, as pessoas tendem a guiar-se cada vez menos em valores “ideais” e cada vez mais, digo, é na hora da morte que a decisão é tomada, sem muita racionalização.  
        
Mesmo entre aqueles que consideram que os valores são produzidos historicamente, podem-se distinguir duas atitudes éticas, a primeira bastante próxima do idealismo. Esta posição parece-me ter sido bem exposta por Kohlberg (1981), quando afirma que a pessoa madura do ponto de vista ético tomará decisões com total liberdade e responsabilidade, embora tomando como referência os valores mais universais produzidos por nossa cultura. Sob este enfoque, é sempre diante dos valores, como noções gerais (quase como “ideias”), que os humanos decidem. A segunda posição insiste sobre o fato de que, afinal de contas, não é por referência a valores que se decide – mesmo que os valores sejam necessários ao debate e à reflexão ética. Em última instância, sob esta perspectiva, é diante das pessoas, de seu sofrimento e cara a cara com ela que decidimos. (p. 279)    

Pode-se dizer em outras circunstâncias, num pensamento de reflexão ligeira, que se pensa de agora para daqui a pouco.

Tudo isso, me evoca dois episódios que promoveram mobilização online de alguns bibliotecários brasileiros nesta última semana de agosto de 2012. O primeiro episódio, em um perfil de rede social, expõe e lamenta a situação de miséria absoluta com que se trata o enorme patrimônio brasileiro, que é a Biblioteca Nacional, um típico bem comunitário, malconduzido há décadas por uma insensibilidade inominável dos governos do país. Diz-se que há paredes com risco de cair, rede elétrica comprometida, sistemas de gestão documentária precários, falta de pessoal... Enfim, quanta discussão se deu a partir da primeira mensagem na qual o correspondente membro da lista pergunta sobre uma determinada informação referente ao montante do acervo? Quase nada! Que a Biblioteca Nacional seja extinta, alguém falou isso, que pereça, parece não ser uma ameaça suficientemente grande para mobilizar os bibliotecários brasileiros. O segundo episódio trata-se de uma petição pública criada como manifestação de contrariedade da “comunidade bibliotecária” à aprovação de um certo projeto de Lei que, em apreciação no Senado Federal, põe em risco a potencial abertura de vagas de trabalho futuro para egressos de cursos de graduação em Biblioteconomia nas bibliotecas escolares que poderão vir a ser criadas. Em um único dia, mais de hum mil assinaturas foram coletadas.

Evidentemente, estou afirmando, de certa maneira, que talvez Fourez não tenha visto, até então, tudo, para chegar à sua reflexão sintetizada no trecho que citei. Penso que a insensibilidade do bibliotecário brasileiro ante as causas comunitárias é grande o suficiente para não encarar a gravidade da situação da Biblioteca Nacional como provocadora de sofrimento para a população do país, na qual ele também está incluído. Quando essa questão, e há outras graves assim que deveriam importar aos bibliotecários brasileiros, não estão motivando a pauta desse tipo de tema como item permanente em todos os seus planos de ação, em seus eventos, em seus projetos, é porque o afastamento que têm da realidade se tornou sinal de insensibilidade social. Por fim, essencialmente não vejo como contrariar todo o conteúdo da citação, pois parece ser claro que os bibliotecários brasileiros se pautem não em valores mais universais para decidir sobre sua conduta profissional e nem mesmo em valores que não sejam o do salário, que poderá servir para solucionar seus próprios sofrimentos materiais. Prevalece, então, um falseado discurso comunitarista que é permanentemente negado pela postura diante dos fatos produzidos pela realidade sensível do país. Depois, espera-se que a comunidade e seus representantes políticos sejam sensíveis ao valor e relevância da profissão de bibliotecário. Vejo contradição!

FOUREZ, Gérard. A construção das ciências; introdução à filosofia e à ética das ciências. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Ed. UNESP, 1995. 319p.