III
SINFORGEDS, 2014 – Fortaleza, Ceará.
Palestra
realizada em 18 de setembro de 2014
A ética no tratamento, organização e
representação da informação.
Francisco
das Chagas de Souza
Departamento
de Ciência da Informação - UFSC
Inicio esta
palestra com a proposição de que se pode traduzir o termo ética pela ideia de
que ele quer significar valor, atitude e comportamento de pessoas humanas que
enxergam outras pessoas humanas e todos os seres sencientes em senso de convergência
na construção da realidade (BERGER; LUCKMANN, 2005). Faço isso a fim de situar
o teor do que compreendi como a razão para ser convidado a participar neste
impar evento. Entendo que valor, atitude e comportamento só adquirem sentido
quando se desenvolvem ações visando a resultados e constituindo meios e tendo
destinatários, ou seja, quando as ações praticadas têm como finalidade atender
expectativas de outrem, demandante dos resultados produzidos pela execução
dessas ações. Eu me valho aqui do entendimento de que ao pensar acerca de circunstâncias
concretas se pode tratar valor, atitude e comportamento como algo que não é absolutamente
autônomo, acima das pessoas, mas tendo origem, sendo determinado e determinante
das relações interpessoais (ANGELUCCI et al., 2008; FEREZ;
CHAUI, 1996; GOERGEN, 2005;; MENESES; NIETZSCHE, 2000; NIETZSCHE,
2011; SIMÕES, 2009), posto que resultante de avaliação ou escolha.
Quero dizer com esse entendimento inicialmente
exposto, que vejo a ética como um feixe de saberes que dá base para refletir-se
sobre a ação e a convivência humana. Esse feixe de saberes pode ser bem ou mal compreendido
pelas pessoas. Daí pode-se formar a percepção de que certas pessoas agem a
partir de certos valores e expressam certas atitudes e comportamentos que se
consumam no que se chama de boa conduta em determinadas circunstâncias ou de má
conduta em outras. E uma ou outra coisa se dá na proporção em que o reconhecido
praticante de boa conduta vela pela produção de beneficência às outras pessoas
com quem interage nas relações humanas e sociais. Uma conduta contrária, que
espraia a maleficência está expressa nos comportamentos e atitudes de pessoas
que tratam as outras pessoas como meras coisas ou até não coisas. Enxergar
pessoas como meras coisas é atitude semelhante à seguida nos processos da indústria
de transformação empregados desde a primeira revolução industrial, iniciada por
meados do século XVIII, para tratar do ambiente natural, como mera fonte de
matérias primas.
Extrai-se do
já afirmado que valor, atitude e comportamento de pessoas são abstrações por
elas concebidas e traduzidas em condutas, tanto em âmbito pessoal quanto
profissional. Tomado como marco, pode-se a partir dele fazer-se o esforço
devido para se avaliar as ações que se manifestam nas relações de umas pessoas
para com as outras e para com seu contexto vivencial.
O tema para
mim dado a abordar apresenta-se como objeto constituído por três modalidades de ação: o tratamento, a
organização e a representação. Essas ações dar-se-iam sobre a informação. Sobre
ela agiria a prática ética, isto é, sobre a informação seria exteriorizada a
conduta desempenhada por uma pessoa, coautora e operadora de um conhecimento
singular, ou seja, o conhecimento expresso como domínio de teoria e técnicas próprias,
historicamente desenvolvidas, aplicadas e ensinadas como as mais adequadas para
o cumprimento dessas ações. Na relação que se estabelecerá objetivamente com o
interlocutor, demandante da informação, tratamento, organização e representação
da mesma são as ações executadas que lhe permitem receber o atendimento
possível. É, portanto, na feitura dessas ações, na relação que se estabelece
para e durante o seu desenrolar que entra a ética. Essa expressão, entra a ética, foi dita por Umberto Eco
em seu debate com Carlo Maria Martini, quando expôs que na relação com outro,
duas pessoas humanas se colocam em mútua locução. Por uma extensão da reflexão,
pode-se identificar que há tratamento, organização e representação da
informação porque outras pessoas (um eu diverso no espaço ou no tempo) estarão
na ponta final da execução das ações como beneficiário das práticas executadas.
Estará lá o outro referido pelo Umberto Eco (ECO; MARTINI, 2000), o alter ego, muito melhor percebido e
explicitado por Emanuel Levinas (1988). É esse outro humano, é para esse outro,
que existe como demandante desse cuidado, que se dirigem as ações de
tratamento, organização e representação da informação.
Antes de
prosseguir no exame do para quem o objeto informação sofre as ações de
tratamento, organização e representação, quero analisar um pouco esse mesmo
objeto, colocando a questão fundamental: O que é a informação? Começo por tomar uns poucos traços que expõem
a fenomenologia da informação no mundo atual, algumas de suas implicações e até
mesmo me aventurarei a refletir sobre a razão da preocupação que fica a parecer
cada dia mais premente de sobre a qual falar.
Encontro em
Derrida (1999) em texto no qual está transcrita conferência por ele proferida em abril de 1983, como aula
inaugural na Universidade de Cornell (Nova Iorque), a propósito de refletir
sobre o lugar da universidade na sociedade, um conceito de informação que me parece
instigante. Informação, numa perspectiva de modernidade técnica, é “a
estocagem, o arquivamento e a comunicação mais econômica, mais rápida e mais
clara (unívoca) das notícias. [...] A informação não informa somente fornecendo
um conteúdo informativo, ela dá forma [...]. Ela instala o homem em uma forma
que lhe permita assegurar seu domínio na terra e além da terra”. (p. 145-146)
Mas para a
reflexão que aqui desenvolvo vou comungar com outro olhar que me parece
auxiliar num melhor exame do tema que ora trato. Trago o que extraio do
pensamento de Vilém Flusser (2007). Para ele, a informação é uma “não coisa”,
que notoriamente vai tomando o lugar das coisas. Ela é não coisa, no sentido
dado por esse filósofo contemporâneo, na medida em que se pode considerar que não
se come informação, não se veste informação, não se calça informação; a
informação não banha os corpos, nem os transporta, muito menos é alimento
sólido ou líquido que sacia sua fome e sede. Mas, entretanto, não pode dizer-se
que a informação nada é, nem que deixa de ser um objeto. Como um bem ou objeto
que está presente no mundo humanamente conhecido, nos discursos socialmente construídos,
ela perpassa a mente humana, está em seu pensamento e compõe todas as coisas e
também as não coisas. Ela tem essa condição, por que coisas ou não coisas,
quase todas, receberam processamento racional, dirigido por um programa, isto
é, um modelo que prevê a sua elaboração. Por ser não coisa, a informação não é
um hardware, não é o carro, nem o avião, não é o balde de zinco que cai no
barranco e menos ainda o bastão com que o policial espanca a multidão
enfurecida. Então, com mais evidência, a informação talvez seja ou corresponda
a um Programa como dirá Flusser (1983). Ela é, por isso, um software, uma
codificação ou uma simbologia; em certos termos é, portanto, representação de
coisas.
Chega-se,
assim, à percepção de que a informação é a representação de coisas, porque só
existe, enquanto simbologia, por exemplo, como: o fonema, a letra, o algarismo,
qualquer ícone, etc., que em si não é mastigável, triturável, apreensível
manualmente, sujeito a diluição física ou transformação química, nem a
degeneração biológica. Ela é uma emanação de nossos pensamentos e construtora
de nossos pensamentos ou ainda, dialogando-se com Flusser (2004), o meio pelo
qual nossa mente concebe coisas e as produz com uso da natureza (a começar pelo
cérebro humano) como fonte de matéria prima, fazendo então dessas coisas
detritos de nossa mente.
Sua
potencialização econômica, a irrecusabilidade de sua manifestação, a ampliação
de seu volume e de seu alcance como saber, vai transformá-la em nova indústria
em que a matéria prima é de outra ordem. Virtualmente, essa matéria prima é o
cérebro do corpo humano, é a capacidade humana de pensar, de calcular, de refletir,
de processar a partir das sensações e dos neurônios sua continua ampliação em
volume e complexidade. Cada vez mais, cada dia mais, uma cadeia produtiva de
não coisas vai acumulando um volume trilionário de resultados econômicos e
financeiros: a indústria de software, a indústria de jogos eletrônicos, etc. tem
ampliado o número de postos de trabalho direto ou paralelo e exigido a contínua
e cada dia mais volumosa busca de fontes de energia, sem o que estagnará ou
reduzirá os seus movimentos.
A título de
subsídio para que se possa avançar nesta reflexão, pode-se identificar a existência
de várias fontes de dados que, como fontes, são
coisas que exibem não coisas, para reforçar e demonstrar como a não
coisa informação tem forte impacto na existência da humanidade atual. O site
Worldometers (http://www.worldometers.info/pt/)
mostrava alguns indicadores (às 20h15min de 22 de agosto último) que
expressam o crescimento contínuo do volume de unidades de produtos de
informação em contraste com produções coisais, cujo ritmo tende a não manter a
mesma dinâmica de anos passados. No quadro simplificado que está abaixo pode
ver-se que dentre os vários tópicos que constituem essa fonte há um rol de
coisas e não coisas que permite contrastar o que aqui se diz. Os itens
destacados com asterisco são claramente coisas e têm um volume de produção
inferior aos itens representativos de não coisas.
Sociedade,
Media, Governo, Economia e Energia
|
|
Total de unidades
|
Item
|
1.597.380
|
Livros publicados este ano *
|
424.328.409
|
Jornais a circularem
hoje *
|
554.767
|
Televisores vendidos hoje no mundo *
|
4.325.824
|
Telemóveis vendidos
hoje no mundo *
|
$ 157.398.910
|
Dinheiro gasto com videojogos hoje
|
2.956.993.200
|
Utilizadores de Internet no mundo
|
176.823.841.854
|
Emails
enviados hoje
|
3.024.373
|
Mensagens colocadas em Blog's hoje
|
550.967.309
|
Tweets
enviados hoje
|
3.303.531.413
|
Pesquisas no Google hoje
|
44.378.078
|
Carros produzidos neste ano *
|
90.118.625
|
|
179.834.820
|
|
$ 8.184.114.387
|
|
$ 4.206.985.776
|
|
340.834.060
|
Energia usada hoje (em MWh)
|
72.939.389
|
Petróleo
extraído hoje (em barris) *
|
Captado em 22/08/2014, às 20h15min em: Worldometers (http://www.worldometers.info/pt/)
Vê-se, então, que coisas e não
coisas são bens econômicos que transitam em um mundo vivido, que atingem nossos
sentidos, que nos mobilizam concretamente, como dirão Alfred Schutz e Thomas
Luckmann (2003), Alfred Schutz (2012) e
outros fenomenologistas. Portanto, essas coisas e essas não coisas compõem
mercadorias que estão alimentando o progresso material das sociedades a partir
do agir econômico. As indústrias que as processam e os consumidores que as
adquirem e as utilizam estão, supostamente, em diálogo corrente mediado pela
mútua confiança. Certamente, ambos para fazerem desse mercado um feixe de ações
de compra, venda, uso e manutenção têm de estar mutuamente convencidos de que
seus valores, atitudes e comportamentos são os melhores possíveis. De um lado, os
que fabricam o produto correto, reparam
corretamente um equipamento, orientam corretamente seu uso, de outro lado, os que compram e usam o produto correto, sendo esse
correto correspondente à conformidade de seus interesses, desejos ou
necessidades. Isso, em si, dá forma a dois campos em mútua operação. Então,
vê-se aqui a razão importante sobre a qual se firma um movimento internacional
do setor empresarial no sentido de tentar expor e sustentar um discurso de
ética empresarial. O momento em que isso começa a acontecer, de acordo com Bannwart
Júnior; Souza (2010) é nos anos da década de 1970. Dizem: “A partir dos anos 70 nos Estados Unidos surge a chamada ética
dos negócios, que impulsiona a discussão e o aparecimento da ética empresarial
na América Latina em 1980 e no oriente após a década de 1990”.
Para mim,
parece que há uma grande coincidência temporal entre esse esforço das grandes
corporações em se determinarem por mostrarem-se boas, sérias, responsáveis,
honestas e solidárias para com seus pares e clientes e a repercussão do
conceito de responsabilidade social.
Isso de que falo traduz um movimento
de construção de representação de ideias. Falo da produção contínua de não
coisas, de informação, de discursos. Discursos, sob o crivo de Vilém Flusser
(1983), são recursos para a produção de distanciamento entre as pessoas em
contraste com diálogos; diálogos corresponderiam à circunstância em que pessoas
estão corporalmente, fisicamente, diante das outras trocando mensagens em
presença num mesmo espaço. Dizer-se responsável, através da formalização de
vários instrumentos escritos ou videofilmados de conteúdo deontológico, de
recursos de publicidade e propaganda, como é feito por governos e empresas, tem
uma distância muito grande da circunstância em que pessoas estão lado a lado,
corporalmente, ombreando junto visando à resolução de uma questão. Dispor de um
serviço de mensagens gravadas, de um manual de orientação ao uso, de um canal
de FAQs é muito distinto do atendimento presencial, em que as dúvidas, ou as
queixas e sugestões são expostas para outra pessoa com quem se está fisicamente
diante num mesmo espaço físico. Nesse sentido, grande parte da relação hoje
existente entre pessoas que vendem e buscam serviços são de modo tal que exprimem
a colocação das pessoas na condição de coisa capaz de operar coisas e não coisas.
Esse processo de coisificação das pessoas (tomadas como meros canais sonoros,
auditivos ou táteis, além de visuais) sejam atendentes ou usuárias de um
sistema é correlato a que eticidade?
Tal processo como um exercício
profissional, composto por ações de tratamento, organização e representação de
dado objeto, assim como seus agentes,
comporiam também um programa,
seriam em bloco não coisa. Em sendo não coisa, em não havendo consciência
humana durante a ação, por ser operação automática, presumiria a ocorrência da
prática ética por ocasião da programação desse processo.
Ao que me
parece, existe a perpassar o presente mundo vivido uma razão fortemente
desumanizadora. Nele se dá um movimento que, com todo o seu aparato ou
aparelhagem material e verbal, está cada vez mais a comandar as pessoas. O
discurso que nele está sintetizado tem a forma de expressões de caráter imperioso
e carregado de violência. Ele se faz mandatório, e uma expressão que o tipifica
é: o sistema caiu. O sistema esteja
onde estiver, é um deus, o deus programa, o deus software, contra o qual não deverá
haver rebelião, contestação e, quando em algum momento isso pode acontecer
assombra o guardião das máquinas que dão funcionalidade ao sistema. E nesse
momento, chama-se a segurança e não as pessoas que virão construir a solução,
mas as que vêm reafirmar, também como coisas (funções) a ordem da ética
possível − a da submissão – que é a única
permitida pelo programa. Há em anos recentes muitas evidências disso. Por
exemplo, vejam-se os Estados Unidos da América e também os estados europeus em
crise econômica produzida desde 2008 pelo segmento financeiro e pela conivência
dos políticos (ANDERSON, 2014). Esses, ao provocarem instabilidade econômica
para pequenos investidores e perda de emprego e renda para a classe
trabalhadora, ao vê-las rebeladas, vão utilizar as forças de segurança e os
aparatos judiciários dos respectivos Estados para fornecer garantias e sustentação
ao sistema bancário e aos demais setores empresariais. Isso é exibido pela
imprensa como imagens e textos sobre a repressão policial das manifestações dos
trabalhadores rebelados na Grécia, Espanha, Portugal, etc. Outro claro exemplo
disso foi dado no ano de 2013, no Brasil, como reação às jornadas populares de
junho, pela mobilização das forças de segurança e aparato judiciário na
repressão das manifestações realizadas em quase todo o território nacional, em
defesa de direitos sociais.
Parece que
essa prática, que se calça em um modelo de ética, não traduz para os membros da
sociedade, os cidadãos, a beneficência que está presumida na ordem constitucional
dos países. Entretanto, parece verdadeiro que esses cidadãos merecem ser
tratados como pessoas até porque são, em última instância, como consumidores e produtores de bens e
riquezas ou como pagantes de tributos aos diferentes níveis de governo, os
financiadores do Estado. Então, em reforço à desumanidade, há certas condutas praticadas
no setor empresarial, além do financeiro, provavelmente em todos os seus ramos
negociais e no setor governamental, pelos dirigentes e também pelos seus funcionários,
que supõem não lidar com pessoas com quem caberia dialogar. Atuam com posturas
cuja conduta final se afirma na produção
de discursos como comandos morais, ou como propaganda que são não coisa, porque
se conformam ao nível de contradiálogo.
Ao que se
observa o quadro de defesa do discurso ético de certa maneira derivado do
projeto corporativo, com a liderança de grandes companhias, a partir da segunda
metade do século XX, vai se espraiando pelos demais segmentos. As empresas têm
seus códigos de ética ou de denominação equivalente, os governos idem, as corporações
profissionais que ainda não dispunham, quando tem sua organização mais recente,
também o buscam. Porém, se orientam por um viés mais pragmático, guiado pela
busca de resultados econômicos vantajosos e, assim, buscam e encontram um termo
substituto ao termo “ética” e forjam uma expressão a cada dia mais em uso que é:
“boas práticas”. Esse termo tem bom apelo público e parece capaz de orientar
melhor os empregados das companhias que os adotam e os funcionários dos
governos (SOUZA, 2014).
Longe de
estar imediatamente associada com a matriz discursiva da Filosofia moral, base
milenar da discussão ética, a expressão “boas práticas” tem clara origem no ambiente de produção
industrial, sendo correlata com a ideia da normalização dos processos de
trabalho. De modo geral, se encontra também em documentos de órgãos públicos de
fiscalização e controle de qualidade como: Inmetro e Anvisa, e recentemente foi
adotado pela FAPESP, isto é, como instrumento para a regulação das ações dos
pesquisadores apoiados por essa agência de fomento à pesquisa científica, pertencente
à estrutura administrativa do Governo do Estado de São Paulo (SOUZA, 2014).
Ao falar
sobre tudo isso nesta reflexão, quero acentuar que cada vez mais as pessoas parecem
ser domesticadas com muita informação para renunciarem à condição de pessoas. Elas cada dia mais são
funções, isto é, cumprem papéis na sociedade e, em última instância, esses
papéis são exercidos na sua condição de profissionais em que o papel social
cola-se à pessoa em todo o seu tempo. Disso, se pode extrair a percepção de que
suas condutas podem ser tomadas como os papéis que esses bons praticantes executam.
Penso que para
o bibliotecário e para outros profissionais da informação tratar, organizar e
representar a informação é lidar com metainformação. É atuar na produção de uma
não coisa a partir de uma não coisa anterior, que já é a condição da informação,
sendo a primeira não coisa um texto como texto, uma imagem como tal, por
exemplo. Há discursos como coisas representadas,
por exemplo, sobre ou de um terreno como um corpo físico, sobre ou de uma
fruta, sobre ou de um carro, sobre ou de um computador, sobre ou de um livro
como objeto físico, ou seja, discursos sobre ou de hardwares. Todos os discursos
sobre e de coisas são não coisas. Aqui já se colocam problemas éticos
importantes, do tipo: essa não coisa, esse discurso, representa a coisa
original com fidelidade? Na transposição da coisa para a não coisa que vai ser
tratada, organizada e representada por bibliotecários e outros profissionais
assegura-se que todas as propriedades fundamentais, as características básicas
da coisa foi transferida? Quais compromissos “éticos” o narrador, o fotógrafo
da coisa original, agora em estado de não coisa, levou em conta em sua ação?
Entre o narrador e o fotógrafo há editores, designers, arte finalistas, etc.,
etc., então, como todos esses executaram suas boas práticas? Eles as executaram
meramente como um bom desempenho técnico, tendo em vista assegurar seu próprio
posto de trabalho ou realizaram algo para além deste limite? Há dezenas de
questões para cada conteúdo, isto é, para a não coisa a ser tratada, organizada
e representada que parecem levar à especulação e busca da totalidade. E quando
não se dá conta dessa totalidade, sempre haverá erros e enganos, percebidos e
cometidos por todos os que estão nessa cadeia de produção.
Vi pouca literatura
brasileira produzida nos anos recentes nas áreas de Biblioteconomia e da
Ciência da Informação sobre tratamento, organização e representação da
informação. Àquela que tive acesso nos últimos dias trata das questões
atinentes ao tratamento, organização e representação da informação e parece caminhar
no sentido de evocar boas práticas. Essas boas práticas podem ser agrupadas em
duas vertentes. A primeira apela para a adoção de processos de catalogação
menos sustentados em bom senso e melhor amparados por uma base científica (DAL
EVEDOVE, 2011) ou sugere a superação de obsoletas metodologias utilizadas
para tratamento da informação, pela apropriação das disponibilidades
tecnológicas para tratamento da informação oferecidas pelos mecanismos de busca
e indexação em repositórios eletrônicos (DZIEKANIAK, 2010) ou examina o
enquadramento teórico do tratamento da informação (GUIMARÃES; FERREIRA; FREITAS, 2012). De outro lado, a
outra vertente evoca aspectos mais centrados na ambiguidade como obstáculo ao
bom tratamento e recuperação da Informação (SCHIESSL; BRÄSCHER, 2012) ou
orienta-se para uma abordagem ética, em busca de compreender como essa noção é
apropriada pelos profissionais e como se manifesta na pesquisa. Essa produção voltada
à abordagem ética que identifico como segunda vertente traduz-se em
dissertações e trabalhos apresentados em eventos de Ciência da Informação, e
ocupa-se em apurar a aplicação da noção de garantia cultural na representação
do conhecimento (GUIMARÃES; MILANI;
PINHO, 2008; PINHO, 2006) ou nas particularizações e não neutralidade da ação
do profissional atuante na representação do conhecimento, o que poderia gerar
desvios éticos em prejuízo do usuário (MILANI; GUIMARÃES, 2011).
Ao
evocar a ciência como forma de superação das práticas obsoletas de tratamento
da informação e ao considerar que tais práticas serão mais científicas ao
deixar-se que os sistemas ou mecanismos eletrônicos garantirão essa qualidade a
primeira vertente acima apontada se esmera na direção de uma boa prática que
minimiza um aspecto importante ressaltado nos estudos da outra vertente, ou
seja, a multiculturalidade evocada em outros trabalhos ou a garantia cultural
para a diversidade de posturas e entendimentos carregados pelos usuários. Na
primeira vertente há uma forte crença na garantia de excelência do tratamento
da não coisa informação pelo abandono do olhar não coisificado do profissional,
substituído por software. Mas não há que pensar sobre isso? Mesmo na condição
de papel social o profissional não é mais relevante que o programa? Ele é ainda pessoa e tem uma carga mais
humana que os sistemas ou programas automáticos de tratamento. Na segunda vertente,
há a lembrança da existência de uma potencial humanidade que é produzida em circunstâncias
em que uma ou outra vez, os humanos envolvidos podem ser estimulados a agirem
fora dos estritos papéis sociais de profissionais e usuários. Contudo, em tudo
isso, há ainda uma questão a examinar. No primeiro caso, os profissionais
bibliotecários ou de outra carreira ainda terão uma participação importante na
interação entre a não coisa texto ou imagem e software, humanamente programado,
para a produção de terminologias ou ontologias a serem empregadas entre a
geração e o uso da não coisa informação.
Tudo
isso, a mim parece muito desafiante, no sentido em que se evidencia cada vez
mais a necessidade da
ética ser tomada por todo bibliotecário e demais profissionais da informação
como a diretriz básica a orientá-los na totalidade das ações que realizam das
quais o tratamento, organização e representação da informação é uma etapa,
também importante, mas não a mais importante se tomada como produtora de
solução definitiva na localização dos conteúdos, isto é, das coisas.
Sempre
recordo, de um texto de Salvatore Settis (2000) que, ao falar do bibliófilo Aby
Warburg, faz-me ver neste a figura do que seria o bom organizador da informação.
Settis trata da Biblioteca desse
estudioso construída em Hamburgo e discorre sobre a trajetória da mesma, após
sua morte. O que há de peculiar nessa biblioteca é que para Warburg essa
coleção tinha a informação em contínuo tratamento e organização. Nela, os livros
são tão móveis quanto o pensamento do usuário; Warburg adotava um princípio organizador
da coleção denominado a “lei da boa vizinhança” dos itens do acervo.
Se o usuário
pessoa humana for tomado como o centro de interesse de todo o trabalho de
tratamento, organização e representação da informação não serão os métodos
modernos, automáticos que de uma vez por todas localizarão toda a produção da
não coisa informação.
Assim, me
parece que uma grande conquista no reforço à discussão sobre a
necessidade da ética ser
tomada por todo bibliotecário e demais profissionais da informação como a
diretriz básica a orientá-los na totalidade das ações que realizam, das quais o tratamento, organização e
representação da informação é uma etapa foi, após 85 anos desde sua criação, a
IFLA ter deliberado em 2012 sobre o teor seu Código de Ética para
bibliotecários e outros profissionais da informação. E mais que isso, sua iniciativa de não
considerá-lo impositivo aos grupos bibliotecários nacionais, mas apenas uma
base para que tais grupos criem ou atualizem seus próprios códigos de ética.
Por relevante que me parece, destaco a seguir, os tópicos mais importantes,
desse Código.
PREÂMBULO – Nesta parte:
Apresenta recomendações éticas para a:
- orientação de bibliotecários e
profissionais da informação,
- apreciação de Associações de Bibliotecas e
- apreciação de instituições afins quando
criarem ou revisarem seus próprios códigos.
Afirma a função dos códigos de ética, que
são:
- Estimular a reflexão sobre os princípios
nos quais os bibliotecários e outros profissionais da informação podem formular
políticas e lidar com dilemas;
- Melhorar a autoconsciência profissional;
- Oferecer transparência para os usuários e
sociedade em geral
Diz que este código é oferecido na convicção
de que:
- A Biblioteconomia é, em sua essência, uma
atividade ética, incorporando alto valor agregado ao trabalho profissional com
informações.
- A necessidade de compartilhar ideias e
informação tornou-se mais importante com o aumento da complexidade da sociedade
nos últimos séculos, fornecendo subsídios para as bibliotecas e para a prática
da Biblioteconomia.
- O papel das instituições e profissionais,
incluindo bibliotecas e bibliotecários, na sociedade moderna, é apoiar e
aperfeiçoar o registro e a representação da informação e fornecer o acesso.
- Os serviços de informação de interesse
social, cultural e de bem-estar econômico estão no coração da Biblioteconomia
e, consequentemente, os bibliotecários têm
responsabilidade social.
- A ideia dos direitos humanos,
particularmente como expressa a Declaração Universal dos Direitos Humanos das
Nações Unidas (1948), requer de todos reconhecer e identificar a humanidade de
todos os povos e respeitar seus direitos.
- O Artigo 19 estabelece expressamente o
direito de “buscar, receber e transmitir informação e ideias em quaisquer
mídias, independentemente de fronteiras”, fornecendo subsídios para as bibliotecas
e para a prática moderna e progressiva da Biblioteconomia.
- A ênfase nos direitos de informação obriga
os bibliotecários e outros profissionais da informação a desenvolverem um
princípio crítico de lei relevante e a estarem preparados para aconselhar e, se
apropriado, a defenderem a melhoria, bem como, a administração das leis.
Afirma que a IFLA reconhece que as
especificidades dos códigos variarão necessariamente de acordo com as
especificidades de cada sociedade, comunidade de prática ou comunidade virtual.
Afirma que a formulação dos códigos é uma
função essencial de uma associação profissional, assim como as reflexões sobre
a ética são uma necessidade para todos os profissionais.
Afirma que a IFLA recomenda o Código de
Ética para todas as associações e instituições afiliadas e para bibliotecários
individuais e profissionais da informação com este fim.
Afirma que a IFLA compromete-se a revisar
este código sempre que necessário.
As CLÁUSULAS em que declara as principais questões a merecerem cuidado
ético por parte dos bibliotecários e outros profissionais da informação e as
condutas a serem postas em prática são:
1. ACESSO A INFORMAÇÃO – nesse caso:
Assegurar o acesso à informação para todos
Rejeitar a negação e a restrição do acesso à
informação e ideias, mais particularmente, por meio de censura,
Fazer todo esforço para oferecer acesso às
suas coleções e serviços gratuitos aos usuários. Se são inevitáveis, mantê-las o mais acessível possível.
Promover e divulgar suas coleções e serviços para que seus usuários ou usuários
potenciais estejam conscientes da sua existência e disponibilidade.
Buscar assegurar que websites de
bibliotecas e outras instituições de informação obedeçam aos padrões
internacionais de acessibilidade e que o acesso aos mesmos não esteja
sujeito a barreiras.
2. RESPONSABILIDADES PARA COM OS INDIVÍDUOS
E PARA A SOCIEDADE - nesse caso:
Promover a inclusão e erradicar a
discriminação, assegurando que o
direito de acesso à informação não pode ser negado.
Respeitar línguas minoritárias de um país e
seu direito de acesso à informação em seu próprio idioma.
→Organizar e apresentar conteúdo de uma maneira que permita um usuário
autônomo de encontrar a informação que ele(a) necessita.
Oferecer serviços para aumentar as
habilidades de leitura.
Promover o uso ético da informação.
Ajudar a eliminar plágio e outras formas
de mau uso da informação.
Respeitar a proteção de menores, assegurando
que não impacte no direito de informação dos adultos.
3. PRIVACIDADE, SIGILO E TRANSPARÊNCIA – nesse
caso:
Respeitar a privacidade pessoal e a
proteção de dados pessoais.
Tomar medidas para assegurar que os dados
do usuário não sejam compartilhados além da transação original.
Apoiar e atuar para a transparência a
fim de que as atividades do governo, administração e negócios sejam operadas
para o conhecimento do público geral.
Reconhecer que é de interesse público que a
corrupção, má conduta e crime sejam expostos no que constitui quebra de confidencialidade pelos chamados
'informantes’.
4. ACESSO ABERTO E PROPRIEDADE INTELECTUAL -
nesse caso:
Oferecer
o melhor acesso possível à informação, em qualquer mídia ou formato.
Apoiar os princípios de acesso aberto,
código fonte aberto e licenças abertas.
Fornecer acesso justo, rápido, econômico e
eficaz da informação aos
usuários.
Defender exceções e limitações das
restrições de copyright para
bibliotecas.
Reconhecer o direito de propriedade
intelectual dos autores e outros criadores, buscando assegurar que seus direitos sejam respeitados.
Procurar assegurar que o acesso não seja
desnecessariamente impedido ou dificultado pelo modo de administração das leis
da propriedade intelectual e que as licenças não sobreponham exceções para as
bibliotecas contidas na legislação nacional.
Encorajar os governos a estabelecer um
regime de propriedade intelectual que respeite apropriadamente o equilíbrio
entre os detentores interessados do direito, os indivíduos e as instituições
como as bibliotecas que os
servem.
Defender que os termos de copyright
possam ser limitados e que a informação que esteja em domínio público
mantenha-se pública e gratuita.
5. NEUTRALIDADE, INTEGRIDADE PESSOAL E
HABILIDADES PROFISSIONAIS – nesse caso:
Estar estritamente comprometidos com a
neutralidade e postura imparcial em relação à coleção, acesso e serviço.
→ Definir e publicar suas políticas de seleção, organização, preservação,
provisão e disseminação da informação.
Diferenciar suas convicções pessoais e suas
obrigações profissionais.
Não promover interesses privados ou crenças
pessoais em detrimento à neutralidade.
Ter o direito de livre fala no ambiente de
trabalho, não infringindo o
princípio de neutralidade relativo aos usuários.
Opor-se diretamente à corrupção que afeta a
Biblioteconomia, tanto na fonte
de recursos, quanto no suprimento de materiais de biblioteca, nomeações para
cargos de biblioteca e administração de contratos de biblioteca e finanças.
Lutar pela excelência na profissão, pela manutenção e melhoria de seus
conhecimentos e habilidades.
Promover uma reputação positiva da profissão.
6. RELAÇÃO COLEGA E EMPREGADOR/EMPREGADO –
nesse caso:
Tratar uns aos outros com justiça e
respeito.
Opor-se à discriminação de qualquer aspecto
no emprego devido à idade,
cidadania, crença política, condição física ou mental, gênero, situação
matrimonial, origem, raça, religião ou orientação sexual.
Promover o pagamento e benefícios
igualitários para homens e mulheres que ocupam serviços similares.
Compartilhar sua experiência profissional com os colegas.
Ajudar e guiar novos profissionais a entrar
na comunidade profissional e a desenvolver suas habilidades.
Contribuir com atividades de sua associação
profissional
Participar em pesquisas e publicações
sobre assuntos profissionais.
Lutar para ganhar reputação e status
baseado no seu profissionalismo e comportamento ético.
Não competir com colegas usando métodos
injustos.
Concluindo,
o papel que o bibliotecário, sem esquecer que é humano, deverá exercer no
tratamento, organização e representação da informação, depende da discussão que
ele coletivamente pode promover em sua categoria profissional. Nesse sentido, a
IFLA, através de seu Código de Ética, está fornecendo o melhor estímulo que uma
entidade internacional de seu porte e com sua finalidade pode fazer.
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