17/10/2014

A ética no tratamento, organização e representação da informação.

III SINFORGEDS, 2014 – Fortaleza, Ceará.
Palestra realizada em 18 de setembro de 2014

A ética no tratamento, organização e representação da informação.

Francisco das Chagas de Souza
Departamento de Ciência da Informação - UFSC


            Inicio esta palestra com a proposição de que se pode traduzir o termo ética pela ideia de que ele quer significar valor, atitude e comportamento de pessoas humanas que enxergam outras pessoas humanas e todos os seres sencientes em senso de convergência na construção da realidade (BERGER; LUCKMANN, 2005). Faço isso a fim de situar o teor do que compreendi como a razão para ser convidado a participar neste impar evento. Entendo que valor, atitude e comportamento só adquirem sentido quando se desenvolvem ações visando a resultados e constituindo meios e tendo destinatários, ou seja, quando as ações praticadas têm como finalidade atender expectativas de outrem, demandante dos resultados produzidos pela execução dessas ações. Eu me valho aqui do entendimento de que ao pensar acerca de circunstâncias concretas se pode tratar valor, atitude e comportamento como algo que não é absolutamente autônomo, acima das pessoas, mas tendo origem, sendo determinado e determinante das relações interpessoais (ANGELUCCI et al., 2008; FEREZ; CHAUI, 1996; GOERGEN, 2005;; MENESES; NIETZSCHE, 2000; NIETZSCHE, 2011; SIMÕES, 2009), posto que resultante de avaliação ou escolha.
             Quero dizer com esse entendimento inicialmente exposto, que vejo a ética como um feixe de saberes que dá base para refletir-se sobre a ação e a convivência humana. Esse feixe de saberes pode ser bem ou mal compreendido pelas pessoas. Daí pode-se formar a percepção de que certas pessoas agem a partir de certos valores e expressam certas atitudes e comportamentos que se consumam no que se chama de boa conduta em determinadas circunstâncias ou de má conduta em outras. E uma ou outra coisa se dá na proporção em que o reconhecido praticante de boa conduta vela pela produção de beneficência às outras pessoas com quem interage nas relações humanas e sociais. Uma conduta contrária, que espraia a maleficência está expressa nos comportamentos e atitudes de pessoas que tratam as outras pessoas como meras coisas ou até não coisas. Enxergar pessoas como meras coisas é atitude semelhante à seguida nos processos da indústria de transformação empregados desde a primeira revolução industrial, iniciada por meados do século XVIII, para tratar do ambiente natural, como mera fonte de matérias primas.
            Extrai-se do já afirmado que valor, atitude e comportamento de pessoas são abstrações por elas concebidas e traduzidas em condutas, tanto em âmbito pessoal quanto profissional. Tomado como marco, pode-se a partir dele fazer-se o esforço devido para se avaliar as ações que se manifestam nas relações de umas pessoas para com as outras e para com seu contexto vivencial.
            O tema para mim dado a abordar apresenta-se como objeto constituído por  três modalidades de ação: o tratamento, a organização e a representação. Essas ações dar-se-iam sobre a informação. Sobre ela agiria a prática ética, isto é, sobre a informação seria exteriorizada a conduta desempenhada por uma pessoa, coautora e operadora de um conhecimento singular, ou seja, o conhecimento expresso como domínio de teoria e técnicas próprias, historicamente desenvolvidas, aplicadas e ensinadas como as mais adequadas para o cumprimento dessas ações. Na relação que se estabelecerá objetivamente com o interlocutor, demandante da informação, tratamento, organização e representação da mesma são as ações executadas que lhe permitem receber o atendimento possível. É, portanto, na feitura dessas ações, na relação que se estabelece para e durante o seu desenrolar que entra a ética. Essa expressão, entra a ética, foi dita por Umberto Eco em seu debate com Carlo Maria Martini, quando expôs que na relação com outro, duas pessoas humanas se colocam em mútua locução. Por uma extensão da reflexão, pode-se identificar que há tratamento, organização e representação da informação porque outras pessoas (um eu diverso no espaço ou no tempo) estarão na ponta final da execução das ações como beneficiário das práticas executadas. Estará lá o outro referido pelo Umberto Eco (ECO; MARTINI, 2000), o alter ego, muito melhor percebido e explicitado por Emanuel Levinas (1988). É esse outro humano, é para esse outro, que existe como demandante desse cuidado, que se dirigem as ações de tratamento, organização e representação da informação.
            Antes de prosseguir no exame do para quem o objeto informação sofre as ações de tratamento, organização e representação, quero analisar um pouco esse mesmo objeto, colocando a questão fundamental: O que é a informação?  Começo por tomar uns poucos traços que expõem a fenomenologia da informação no mundo atual, algumas de suas implicações e até mesmo me aventurarei a refletir sobre a razão da preocupação que fica a parecer cada dia mais premente de sobre a qual falar.
            Encontro em Derrida (1999) em texto no qual está transcrita conferência por ele  proferida em abril de 1983, como aula inaugural na Universidade de Cornell (Nova Iorque), a propósito de refletir sobre o lugar da universidade na sociedade, um conceito de informação que me parece instigante. Informação, numa perspectiva de modernidade técnica, é “a estocagem, o arquivamento e a comunicação mais econômica, mais rápida e mais clara (unívoca) das notícias. [...] A informação não informa somente fornecendo um conteúdo informativo, ela dá forma [...]. Ela instala o homem em uma forma que lhe permita assegurar seu domínio na terra e além da terra”.  (p. 145-146)
            Mas para a reflexão que aqui desenvolvo vou comungar com outro olhar que me parece auxiliar num melhor exame do tema que ora trato. Trago o que extraio do pensamento de Vilém Flusser (2007). Para ele, a informação é uma “não coisa”, que notoriamente vai tomando o lugar das coisas. Ela é não coisa, no sentido dado por esse filósofo contemporâneo, na medida em que se pode considerar que não se come informação, não se veste informação, não se calça informação; a informação não banha os corpos, nem os transporta, muito menos é alimento sólido ou líquido que sacia sua fome e sede. Mas, entretanto, não pode dizer-se que a informação nada é, nem que deixa de ser um objeto. Como um bem ou objeto que está presente no mundo humanamente conhecido, nos discursos socialmente construídos, ela perpassa a mente humana, está em seu pensamento e compõe todas as coisas e também as não coisas. Ela tem essa condição, por que coisas ou não coisas, quase todas, receberam processamento racional, dirigido por um programa, isto é, um modelo que prevê a sua elaboração. Por ser não coisa, a informação não é um hardware, não é o carro, nem o avião, não é o balde de zinco que cai no barranco e menos ainda o bastão com que o policial espanca a multidão enfurecida. Então, com mais evidência, a informação talvez seja ou corresponda a um Programa como dirá Flusser (1983). Ela é, por isso, um software, uma codificação ou uma simbologia; em certos termos é, portanto, representação de coisas.
            Chega-se, assim, à percepção de que a informação é a representação de coisas, porque só existe, enquanto simbologia, por exemplo, como: o fonema, a letra, o algarismo, qualquer ícone, etc., que em si não é mastigável, triturável, apreensível manualmente, sujeito a diluição física ou transformação química, nem a degeneração biológica. Ela é uma emanação de nossos pensamentos e construtora de nossos pensamentos ou ainda, dialogando-se com Flusser (2004), o meio pelo qual nossa mente concebe coisas e as produz com uso da natureza (a começar pelo cérebro humano) como fonte de matéria prima, fazendo então dessas coisas detritos de nossa mente.
            Sua potencialização econômica, a irrecusabilidade de sua manifestação, a ampliação de seu volume e de seu alcance como saber, vai transformá-la em nova indústria em que a matéria prima é de outra ordem. Virtualmente, essa matéria prima é o cérebro do corpo humano, é a capacidade humana de pensar, de calcular, de refletir, de processar a partir das sensações e dos neurônios sua continua ampliação em volume e complexidade. Cada vez mais, cada dia mais, uma cadeia produtiva de não coisas vai acumulando um volume trilionário de resultados econômicos e financeiros: a indústria de software, a indústria de jogos eletrônicos, etc. tem ampliado o número de postos de trabalho direto ou paralelo e exigido a contínua e cada dia mais volumosa busca de fontes de energia, sem o que estagnará ou reduzirá os seus movimentos.
            A título de subsídio para que se possa avançar nesta reflexão, pode-se identificar a existência de várias fontes de dados que, como fontes, são  coisas que exibem não coisas, para reforçar e demonstrar como a não coisa informação tem forte impacto na existência da humanidade atual. O site Worldometers (http://www.worldometers.info/pt/)  mostrava alguns indicadores (às 20h15min de 22 de agosto último) que expressam o crescimento contínuo do volume de unidades de produtos de informação em contraste com produções coisais, cujo ritmo tende a não manter a mesma dinâmica de anos passados. No quadro simplificado que está abaixo pode ver-se que dentre os vários tópicos que constituem essa fonte há um rol de coisas e não coisas que permite contrastar o que aqui se diz. Os itens destacados com asterisco são claramente coisas e têm um volume de produção inferior aos itens representativos de não coisas.

Sociedade, Media, Governo, Economia e Energia
Total de unidades
Item
1.597.380

Livros publicados este ano *

424.328.409
Jornais a circularem hoje *
554.767
Televisores vendidos hoje no mundo *
4.325.824
Telemóveis vendidos hoje no mundo *
$ 157.398.910
Dinheiro gasto com videojogos hoje
2.956.993.200
Utilizadores de Internet no mundo
176.823.841.854
Emails enviados hoje
3.024.373
Mensagens colocadas em Blog's hoje
550.967.309
Tweets enviados hoje
3.303.531.413
Pesquisas no Google hoje
44.378.078
90.118.625
179.834.820
8.184.114.387
4.206.985.776
340.834.060
Energia usada hoje (em MWh)
72.939.389
Petróleo extraído hoje (em barris) *
Captado em 22/08/2014, às 20h15min em: Worldometers (http://www.worldometers.info/pt/)

            Vê-se, então, que coisas e não coisas são bens econômicos que transitam em um mundo vivido, que atingem nossos sentidos, que nos mobilizam concretamente, como dirão Alfred Schutz e Thomas Luckmann (2003), Alfred Schutz (2012)  e outros fenomenologistas. Portanto, essas coisas e essas não coisas compõem mercadorias que estão alimentando o progresso material das sociedades a partir do agir econômico. As indústrias que as processam e os consumidores que as adquirem e as utilizam estão, supostamente, em diálogo corrente mediado pela mútua confiança. Certamente, ambos para fazerem desse mercado um feixe de ações de compra, venda, uso e manutenção têm de estar mutuamente convencidos de que seus valores, atitudes e comportamentos são os melhores possíveis. De um lado, os que fabricam o  produto correto, reparam corretamente um equipamento, orientam corretamente seu uso, de outro lado, os que  compram e usam o produto correto, sendo esse correto correspondente à conformidade de seus interesses, desejos ou necessidades. Isso, em si, dá forma a dois campos em mútua operação. Então, vê-se aqui a razão importante sobre a qual se firma um movimento internacional do setor empresarial no sentido de tentar expor e sustentar um discurso de ética empresarial. O momento em que isso começa a acontecer, de acordo com Bannwart Júnior; Souza (2010) é nos anos da década de 1970. Dizem: “A partir dos anos 70 nos Estados Unidos surge a chamada ética dos negócios, que impulsiona a discussão e o aparecimento da ética empresarial na América Latina em 1980 e no oriente após a década de 1990”.
            Para mim, parece que há uma grande coincidência temporal entre esse esforço das grandes corporações em se determinarem por mostrarem-se boas, sérias, responsáveis, honestas e solidárias para com seus pares e clientes e a repercussão do conceito de responsabilidade social.         
            Isso de que falo traduz um movimento de construção de representação de ideias. Falo da produção contínua de não coisas, de informação, de discursos. Discursos, sob o crivo de Vilém Flusser (1983), são recursos para a produção de distanciamento entre as pessoas em contraste com diálogos; diálogos corresponderiam à circunstância em que pessoas estão corporalmente, fisicamente, diante das outras trocando mensagens em presença num mesmo espaço. Dizer-se responsável, através da formalização de vários instrumentos escritos ou videofilmados de conteúdo deontológico, de recursos de publicidade e propaganda, como é feito por governos e empresas, tem uma distância muito grande da circunstância em que pessoas estão lado a lado, corporalmente, ombreando junto visando à resolução de uma questão. Dispor de um serviço de mensagens gravadas, de um manual de orientação ao uso, de um canal de FAQs é muito distinto do atendimento presencial, em que as dúvidas, ou as queixas e sugestões são expostas para outra pessoa com quem se está fisicamente diante num mesmo espaço físico. Nesse sentido, grande parte da relação hoje existente entre pessoas que vendem e buscam serviços são de modo tal que exprimem a colocação das pessoas na condição de coisa capaz de operar coisas e não coisas. Esse processo de coisificação das pessoas (tomadas como meros canais sonoros, auditivos ou táteis, além de visuais) sejam atendentes ou usuárias de um sistema é correlato a que eticidade?
            Tal processo como um exercício profissional, composto por ações de tratamento, organização e representação de dado objeto, assim como seus agentes,  comporiam  também um programa, seriam em bloco não coisa. Em sendo não coisa, em não havendo consciência humana durante a ação, por ser operação automática, presumiria a ocorrência da prática ética por ocasião da programação desse processo.
            Ao que me parece, existe a perpassar o presente mundo vivido uma razão fortemente desumanizadora. Nele se dá um movimento que, com todo o seu aparato ou aparelhagem material e verbal, está cada vez mais a comandar as pessoas. O discurso que nele está sintetizado tem a forma de expressões de caráter imperioso e carregado de violência. Ele se faz mandatório, e uma expressão que o tipifica é: o sistema caiu. O sistema esteja onde estiver, é um deus, o deus programa, o deus software, contra o qual não deverá haver rebelião, contestação e, quando em algum momento isso pode acontecer assombra o guardião das máquinas que dão funcionalidade ao sistema. E nesse momento, chama-se a segurança e não as pessoas que virão construir a solução, mas as que vêm reafirmar, também como coisas (funções) a ordem da ética possível  − a da submissão – que é a única permitida pelo programa. Há em anos recentes muitas evidências disso. Por exemplo, vejam-se os Estados Unidos da América e também os estados europeus em crise econômica produzida desde 2008 pelo segmento financeiro e pela conivência dos políticos (ANDERSON, 2014). Esses, ao provocarem instabilidade econômica para pequenos investidores e perda de emprego e renda para a classe trabalhadora, ao vê-las rebeladas, vão utilizar as forças de segurança e os aparatos judiciários dos respectivos Estados para fornecer garantias e sustentação ao sistema bancário e aos demais setores empresariais. Isso é exibido pela imprensa como imagens e textos sobre a repressão policial das manifestações dos trabalhadores rebelados na Grécia, Espanha, Portugal, etc. Outro claro exemplo disso foi dado no ano de 2013, no Brasil, como reação às jornadas populares de junho, pela mobilização das forças de segurança e aparato judiciário na repressão das manifestações realizadas em quase todo o território nacional, em defesa de direitos sociais.  
            Parece que essa prática, que se calça em um modelo de ética, não traduz para os membros da sociedade, os cidadãos, a beneficência que está presumida na ordem constitucional dos países. Entretanto, parece verdadeiro que esses cidadãos merecem ser tratados como pessoas até porque são, em última instância,  como consumidores e produtores de bens e riquezas ou como pagantes de tributos aos diferentes níveis de governo, os financiadores do Estado. Então, em reforço à desumanidade, há certas condutas praticadas no setor empresarial, além do financeiro, provavelmente em todos os seus ramos negociais e no setor governamental, pelos dirigentes e também pelos seus funcionários, que supõem não lidar com pessoas com quem caberia dialogar. Atuam com posturas cuja conduta final se afirma na  produção de discursos como comandos morais, ou como propaganda que são não coisa, porque se conformam ao nível de contradiálogo.
            Ao que se observa o quadro de defesa do discurso ético de certa maneira derivado do projeto corporativo, com a liderança de grandes companhias, a partir da segunda metade do século XX, vai se espraiando pelos demais segmentos. As empresas têm seus códigos de ética ou de denominação equivalente, os governos idem, as corporações profissionais que ainda não dispunham, quando tem sua organização mais recente, também o buscam. Porém, se orientam por um viés mais pragmático, guiado pela busca de resultados econômicos vantajosos e, assim, buscam e encontram um termo substituto ao termo “ética” e forjam uma expressão a cada dia mais em uso que é: “boas práticas”. Esse termo tem bom apelo público e parece capaz de orientar melhor os empregados das companhias que os adotam e os funcionários dos governos (SOUZA, 2014).
            Longe de estar imediatamente associada com a matriz discursiva da Filosofia moral, base milenar da discussão ética, a expressão “boas práticas” tem  clara origem no ambiente de produção industrial, sendo correlata com a ideia da normalização dos processos de trabalho. De modo geral, se encontra também em documentos de órgãos públicos de fiscalização e controle de qualidade como: Inmetro e Anvisa, e recentemente foi adotado pela FAPESP, isto é, como instrumento para a regulação das ações dos pesquisadores apoiados por essa agência de fomento à pesquisa científica, pertencente à estrutura administrativa do Governo do Estado de São Paulo (SOUZA, 2014).
            Ao falar sobre tudo isso nesta reflexão, quero acentuar que cada vez mais as pessoas parecem ser domesticadas com muita informação para renunciarem à  condição de pessoas. Elas cada dia mais são funções, isto é, cumprem papéis na sociedade e, em última instância, esses papéis são exercidos na sua condição de profissionais em que o papel social cola-se à pessoa em todo o seu tempo. Disso, se pode extrair a percepção de que suas condutas podem ser tomadas como os papéis que esses bons praticantes executam.
            Penso que para o bibliotecário e para outros profissionais da informação tratar, organizar e representar a informação é lidar com metainformação. É atuar na produção de uma não coisa a partir de uma não coisa anterior, que já é a condição da informação, sendo a primeira não coisa um texto como texto, uma imagem como tal, por exemplo. Há discursos como coisas  representadas, por exemplo, sobre ou de um terreno como um corpo físico, sobre ou de uma fruta, sobre ou de um carro, sobre ou de um computador, sobre ou de um livro como objeto físico, ou seja, discursos sobre ou de hardwares. Todos os discursos sobre e de coisas são não coisas. Aqui já se colocam problemas éticos importantes, do tipo: essa não coisa, esse discurso, representa a coisa original com fidelidade? Na transposição da coisa para a não coisa que vai ser tratada, organizada e representada por bibliotecários e outros   profissionais assegura-se que todas as propriedades fundamentais, as características básicas da coisa foi transferida? Quais compromissos “éticos” o narrador, o fotógrafo da coisa original, agora em estado de não coisa, levou em conta em sua ação? Entre o narrador e o fotógrafo há editores, designers, arte finalistas, etc., etc., então, como todos esses executaram suas boas práticas? Eles as executaram meramente como um bom desempenho técnico, tendo em vista assegurar seu próprio posto de trabalho ou realizaram algo para além deste limite? Há dezenas de questões para cada conteúdo, isto é, para a não coisa a ser tratada, organizada e representada que parecem levar à especulação e busca da totalidade. E quando não se dá conta dessa totalidade, sempre haverá erros e enganos, percebidos e cometidos por todos os que estão nessa cadeia de produção.
            Vi pouca literatura brasileira produzida nos anos recentes nas áreas de Biblioteconomia e da Ciência da Informação sobre tratamento, organização e representação da informação. Àquela que tive acesso nos últimos dias trata das questões atinentes ao tratamento, organização e representação da informação e parece caminhar no sentido de evocar boas práticas. Essas boas práticas podem ser agrupadas em duas vertentes. A primeira apela para a adoção de processos de catalogação menos sustentados em bom senso e melhor amparados por uma base científica (DAL EVEDOVE, 2011) ou sugere a superação de obsoletas metodologias utilizadas para tratamento da informação, pela apropriação das disponibilidades tecnológicas para tratamento da informação oferecidas pelos mecanismos de busca e indexação em repositórios eletrônicos (DZIEKANIAK, 2010) ou examina o enquadramento teórico do tratamento da informação (GUIMARÃES; FERREIRA; FREITAS, 2012). De outro lado, a outra vertente evoca aspectos mais centrados na ambiguidade como obstáculo ao bom tratamento e recuperação da Informação (SCHIESSL; BRÄSCHER, 2012) ou orienta-se para uma abordagem ética, em busca de compreender como essa noção é apropriada pelos profissionais e como se manifesta na pesquisa. Essa produção voltada à abordagem ética que identifico como segunda vertente traduz-se em dissertações e trabalhos apresentados em eventos de Ciência da Informação, e ocupa-se em apurar a aplicação da noção de garantia cultural na representação do conhecimento (GUIMARÃES; MILANI; PINHO, 2008; PINHO, 2006) ou nas  particularizações e não neutralidade da ação do profissional atuante na representação do conhecimento, o que poderia gerar desvios éticos em prejuízo do usuário (MILANI;  GUIMARÃES, 2011).
            Ao evocar a ciência como forma de superação das práticas obsoletas de tratamento da informação e ao considerar que tais práticas serão mais científicas ao deixar-se que os sistemas ou mecanismos eletrônicos garantirão essa qualidade a primeira vertente acima apontada se esmera na direção de uma boa prática que minimiza um aspecto importante ressaltado nos estudos da outra vertente, ou seja, a multiculturalidade evocada em outros trabalhos ou a garantia cultural para a diversidade de posturas e entendimentos carregados pelos usuários. Na primeira vertente há uma forte crença na garantia de excelência do tratamento da não coisa informação pelo abandono do olhar não coisificado do profissional, substituído por software. Mas não há que pensar sobre isso? Mesmo na condição de papel social o profissional não é mais relevante que o programa?  Ele é ainda pessoa e tem uma carga mais humana que os sistemas ou programas automáticos de tratamento. Na segunda vertente, há a lembrança da existência de uma potencial humanidade que é produzida em circunstâncias em que uma ou outra vez, os humanos envolvidos podem ser estimulados a agirem fora dos estritos papéis sociais de profissionais e usuários. Contudo, em tudo isso, há ainda uma questão a examinar. No primeiro caso, os profissionais bibliotecários ou de outra carreira ainda terão uma participação importante na interação entre a não coisa texto ou imagem e software, humanamente programado, para a produção de terminologias ou ontologias a serem empregadas entre a geração e o uso da não coisa informação.  
            Tudo isso, a mim parece muito desafiante, no sentido em que se evidencia cada vez mais a necessidade da ética ser tomada por todo bibliotecário e demais profissionais da informação como a diretriz básica a orientá-los na totalidade das ações que realizam das quais o tratamento, organização e representação da informação é uma etapa, também importante, mas não a mais importante se tomada como produtora de solução definitiva na localização dos conteúdos, isto é, das coisas.
            Sempre recordo, de um texto de Salvatore Settis (2000) que, ao falar do bibliófilo Aby Warburg, faz-me ver neste a figura do que seria o bom organizador da informação. Settis  trata da Biblioteca desse estudioso construída em Hamburgo e discorre sobre a trajetória da mesma, após sua morte. O que há de peculiar nessa biblioteca é que para Warburg essa coleção tinha a informação em contínuo tratamento e organização. Nela, os livros são tão móveis quanto o pensamento do usuário; Warburg adotava um princípio organizador da coleção denominado a “lei da boa vizinhança” dos itens do acervo.  
            Se o usuário pessoa humana for tomado como o centro de interesse de todo o trabalho de tratamento, organização e representação da informação não serão os métodos modernos, automáticos que de uma vez por todas localizarão toda a produção da não coisa informação.
            Assim, me parece que uma grande conquista no reforço à discussão sobre a necessidade da ética ser tomada por todo bibliotecário e demais profissionais da informação como a diretriz básica a orientá-los na totalidade das ações que realizam,  das quais o tratamento, organização e representação da informação é uma etapa foi, após 85 anos desde sua criação, a IFLA ter deliberado em 2012 sobre o teor seu Código de Ética para bibliotecários e outros profissionais da informação. E mais que isso, sua iniciativa de não considerá-lo impositivo aos grupos bibliotecários nacionais, mas apenas uma base para que tais grupos criem ou atualizem seus próprios códigos de ética. Por relevante que me parece, destaco a seguir, os tópicos mais importantes, desse Código.

PREÂMBULO – Nesta parte:

Apresenta recomendações éticas para a:
- orientação de bibliotecários e profissionais da informação,
- apreciação de Associações de Bibliotecas e
- apreciação de instituições afins quando criarem ou revisarem seus próprios códigos.

Afirma a função dos códigos de ética, que são:
- Estimular a reflexão sobre os princípios nos quais os bibliotecários e outros profissionais da informação podem formular políticas e lidar com dilemas;
- Melhorar a autoconsciência profissional;
- Oferecer transparência para os usuários e sociedade em geral

Diz que este código é oferecido na convicção de que:
- A Biblioteconomia é, em sua essência, uma atividade ética, incorporando alto valor agregado ao trabalho profissional com informações.
- A necessidade de compartilhar ideias e informação tornou-se mais importante com o aumento da complexidade da sociedade nos últimos séculos, fornecendo subsídios para as bibliotecas e para a prática da Biblioteconomia.
- O papel das instituições e profissionais, incluindo bibliotecas e bibliotecários, na sociedade moderna, é apoiar e aperfeiçoar o registro e a representação da informação e fornecer o acesso.
- Os serviços de informação de interesse social, cultural e de bem-estar econômico estão no coração da Biblioteconomia e, consequentemente, os bibliotecários têm  responsabilidade social.
- A ideia dos direitos humanos, particularmente como expressa a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), requer de todos reconhecer e identificar a humanidade de todos os povos e respeitar seus direitos.

- O Artigo 19 estabelece expressamente o direito de “buscar, receber e transmitir informação e ideias em quaisquer mídias, independentemente de fronteiras”, fornecendo subsídios para as bibliotecas e para a prática moderna e progressiva da Biblioteconomia.
- A ênfase nos direitos de informação obriga os bibliotecários e outros profissionais da informação a desenvolverem um princípio crítico de lei relevante e a estarem preparados para aconselhar e, se apropriado, a defenderem a melhoria, bem como, a administração das leis.

Afirma que a IFLA reconhece que as especificidades dos códigos variarão necessariamente de acordo com as especificidades de cada sociedade, comunidade de prática ou comunidade virtual.

Afirma que a formulação dos códigos é uma função essencial de uma associação profissional, assim como as reflexões sobre a ética são uma necessidade para todos os profissionais.

Afirma que a IFLA recomenda o Código de Ética para todas as associações e instituições afiliadas e para bibliotecários individuais e profissionais da informação com este fim.  

Afirma que a IFLA compromete-se a revisar este código sempre que necessário.

As CLÁUSULAS em que declara as principais questões a merecerem cuidado ético por parte dos bibliotecários e outros profissionais da informação e as condutas a serem postas em prática são:

1. ACESSO A INFORMAÇÃO – nesse caso:

Assegurar o acesso à informação para todos
 
Rejeitar a negação e a restrição do acesso à informação e ideias, mais particularmente, por meio de censura,
 
Fazer todo esforço para oferecer acesso às suas coleções e serviços gratuitos aos usuários. Se são inevitáveis, mantê-las o mais acessível possível.
 
Promover e divulgar suas coleções e serviços para que seus usuários ou usuários potenciais estejam conscientes da sua existência e disponibilidade.

Buscar assegurar que websites de bibliotecas e outras instituições de informação obedeçam aos padrões internacionais de acessibilidade e que o acesso aos mesmos não esteja sujeito a barreiras.

2. RESPONSABILIDADES PARA COM OS INDIVÍDUOS E PARA A SOCIEDADE - nesse caso:  

Promover a inclusão e erradicar a discriminação, assegurando que o direito de acesso à informação não pode ser negado.

Respeitar línguas minoritárias de um país e seu direito de acesso à informação em seu próprio idioma.

→Organizar e apresentar conteúdo de uma maneira que permita um usuário autônomo de encontrar a informação que ele(a) necessita.
 
Oferecer serviços para aumentar as habilidades de leitura.

Promover o uso ético da informação.

Ajudar a eliminar plágio e outras formas de mau uso da informação.

Respeitar a proteção de menores, assegurando que não impacte no direito de informação dos adultos.


3. PRIVACIDADE, SIGILO E TRANSPARÊNCIA – nesse caso:  

Respeitar a privacidade pessoal e a proteção de dados pessoais.

Tomar medidas para assegurar que os dados do usuário não sejam compartilhados além da transação original.

Apoiar e atuar para a transparência a fim de que as atividades do governo, administração e negócios sejam operadas para o conhecimento do público geral.

Reconhecer que é de interesse público que a corrupção, má conduta e crime sejam expostos no que constitui quebra de confidencialidade pelos chamados 'informantes’.

4. ACESSO ABERTO E PROPRIEDADE INTELECTUAL - nesse caso:

Oferecer  o melhor acesso possível à informação, em qualquer mídia ou formato.

Apoiar os princípios de acesso aberto, código fonte aberto e licenças abertas.

Fornecer acesso justo, rápido, econômico e eficaz da informação aos usuários.

Defender exceções e limitações das restrições de copyright para bibliotecas.

Reconhecer o direito de propriedade intelectual dos autores e outros criadores, buscando assegurar que seus direitos sejam respeitados.

Procurar assegurar que o acesso não seja desnecessariamente impedido ou dificultado pelo modo de administração das leis da propriedade intelectual e que as licenças não sobreponham exceções para as bibliotecas contidas na legislação nacional.

Encorajar os governos a estabelecer um regime de propriedade intelectual que respeite apropriadamente o equilíbrio entre os detentores interessados do direito, os indivíduos e as instituições como as bibliotecas que os servem.

Defender que os termos de copyright possam ser limitados e que a informação que esteja em domínio público mantenha-se pública e gratuita.

5. NEUTRALIDADE, INTEGRIDADE PESSOAL E HABILIDADES PROFISSIONAIS – nesse caso:

Estar estritamente comprometidos com a neutralidade e postura imparcial em relação à coleção, acesso e serviço.
 
→ Definir e publicar suas políticas de seleção, organização, preservação, provisão e disseminação da informação.

Diferenciar suas convicções pessoais e suas obrigações profissionais.

Não promover interesses privados ou crenças pessoais em detrimento à neutralidade.

Ter o direito de livre fala no ambiente de trabalho, não infringindo o princípio de neutralidade relativo aos usuários.

Opor-se diretamente à corrupção que afeta a Biblioteconomia, tanto na fonte de recursos, quanto no suprimento de materiais de biblioteca, nomeações para cargos de biblioteca e administração de contratos de biblioteca e finanças.

Lutar pela excelência na profissão, pela manutenção e melhoria de seus conhecimentos e habilidades.

Promover uma reputação positiva da profissão.

6. RELAÇÃO COLEGA E EMPREGADOR/EMPREGADO – nesse caso:

Tratar uns aos outros com justiça e respeito.

Opor-se à discriminação de qualquer aspecto no emprego devido à idade, cidadania, crença política, condição física ou mental, gênero, situação matrimonial, origem, raça, religião ou orientação sexual.

Promover o pagamento e benefícios igualitários para homens e mulheres que ocupam serviços similares.

Compartilhar sua experiência profissional com os colegas.

Ajudar e guiar novos profissionais a entrar na comunidade profissional e a desenvolver suas habilidades.

Contribuir com atividades de sua associação profissional

Participar em pesquisas e publicações sobre assuntos profissionais.

Lutar para ganhar reputação e status baseado no seu profissionalismo e comportamento ético.

Não competir com colegas usando métodos injustos.

           
            Concluindo, o papel que o bibliotecário, sem esquecer que é humano, deverá exercer no tratamento, organização e representação da informação, depende da discussão que ele coletivamente pode promover em sua categoria profissional. Nesse sentido, a IFLA, através de seu Código de Ética, está fornecendo o melhor estímulo que uma entidade internacional de seu porte e com sua finalidade pode fazer.


REFERÊNCIAS
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Ética Bibliotecária e a visão da IFLA

XXXVII ENANCIB, 21 de julho de 2014.
PALESTRANTE  - FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA, Dr.
Professor da UFSC – Departamento de Ciência da Informação



Título: "Ética do bibliotecário e outros profissionais da informação: a visão da IFLA".

EMENTA:

No dia 30 de setembro de 1927, por ocasião do 50o. aniversário de criação da inglesa Library Association, celebrado em Edimburgo, com a participação de delegados de 15 países, foi criada a IFLA, com o nome inicial de Internacional Library and Bibliographic Comittee.

No ano seguinte, 1928, em Roma, foi declarado oficialmente o estabelecimento da entidade, que em 1929, igualmente em Roma, na oportunidade da realização do World Congress of Librarianship and Bibliography recebeu oficialmente o nome atual.

Desde os primeiros dias de sua existência, seu propósito é o de atuar como uma organização não governamental e não econômica capaz de representar as bibliotecas e seus usuários e ser a voz dos bibliotecários em âmbito internacional.

Em 1967, após quarenta anos de seu surgimento, a IFLA realizou em Toronto, sua primeira conferência mundial fora da Europa.

Atualmente, sua sede está em Haia, Holanda, em instalações cedidas pela Royal Library, a Biblioteca Nacional do país. Conta com 1.500 associados de aproximadamente 150 países, tendo aprovado seu Código de Ética, após 85 anos de sua constituição. Por que apenas agora é uma pergunta pertinente?  

Para a elaboração do Código de Ética, incumbiu o seu Comitê de Liberdade de Acesso à Informação e Liberdade de Expressão (FAIFE na sigla em inglês). Esse Comitê, segundo seu site, afirma que  “coletou mais de 60 códigos de ética para bibliotecários de todo o mundo” e que ”Essas diretrizes costumeiramente são adotadas por biblioteca nacional ou associações de bibliotecários ou em alguns casos, implementadas por agências governamentais.”

A partir do material disponível, o FAIFE estabeleceu uma Comissão de Trabalho que, de 2010 a 2012, organizou um Código com ampla colaboração internacional, cuja versão final foi aprovada pelo seu Conselho Diretor em agosto de 2012. Seu teor reforça a noção de que o bibliotecário representa uma profissão central no universo de trabalho com a informação. Essa ideia sugere, portanto, que não caberia subsumir a profissão bibliotecário à geleia geral “profissional da informação”.

É em torno do sentido que esse Código de Ética oferece para o lugar do bibliotecário na sociedade, que se tratará na palestra.

Obs.: na palestra foram mostrados em ppt  aspectos aos quais se deu destaque. Para uma leitura do Código de Ética da IFLA  veja: http://www.ifla.org/files/assets/faife/codesofethics/portuguesecodeofethicsfull.pdf

22/07/2014

A construção do bibliotecário brasileiro formado em nível superior: projeto do ano 2022.

Palestra proferida na abertura do XXXVII Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia Documentação e Gestão da Informação (ENEBD)

Em Brasília, DF, no 20 de julho de 2014


A construção do bibliotecário brasileiro formado em nível superior: projeto do ano 2022.


Francisco das Chagas de Souza
UFSC – Departamento de Ciência da Informação


Têm ocorrido ciclos de aproximadamente 20 anos para cada modificação formal nacional do currículo ou diretrizes curriculares do Curso superior de Biblioteconomia no Brasil. Em 1962 foi aprovado o primeiro currículo mínimo para o ensino superior, a partir do reflexo de uma sociedade existente nos anos das décadas que antecedem a de 1950. Em 1982 houve a instituição de um novo currículo mínimo para esse curso, refletindo os anos das décadas de 1960 e 1970. Em 2001, com implantação a partir de 2002, são estabelecidas as diretrizes curriculares nacionais para os cursos de Biblioteconomia, refletindo as décadas de 1980 e 1990. Pelas discussões que vêm sendo realizadas a partir da implantação dessas diretrizes, há o potencial de em 2022 implantar-se no Brasil uma nova estratégia de organização do ensino superior de Biblioteconomia. É olhando para esse movimento histórico e para essa regularidade temporal da "atualização" estrutural do ensino de biblioteconomia no Brasil que pretendo refletir sobre o sentido da responsabilidade política a ser assumida pelo estudante de biblioteconomia no que tange ao futuro. 


Em agosto de 1936, Stefan Zweig, escritor alemão nascido em 1881 em Viena,  viajou pela primeira vez ao Brasil, permanecendo aqui poucos dias. A partir de material histórico sobre o Brasil e das impressões que obteve nessa viagem, em que percorreu o Brasil de sul a norte, publicou em 1941 o título Brasil, um país do futuro. Pode-se extrair da leitura dessa obra, especialmente, da parte intitulada “Economia”, a mais extensa do texto, que o futuro do Brasil, visto retrospectivamente pelo autor, foi sempre o de realizar conquistas materiais por absoluto acaso. Não que o autor o diga exatamente nesses termos, mas depreende-se isso pela forma como ele descreve os ciclos econômicos que ocorreram até então:

[...] a história econômica do Brasil é cheia de mudanças surpreendentes, e talvez seja até mais dramática do que sua história política, pois geralmente o caráter econômico de um país é determinado inequivocamente desde o começo: cada país toca um instrumento, e o ritmo não muda essencialmente ao longo dos séculos. Um país é agrícola, outro extrai sua riqueza da madeira ou do minério, o terceiro da pecuária. A linha de produção pode oscilar para cima ou para baixo, mas de um modo geral a direção permanece a mesma. O Brasil, ao contrário, é um país das constantes transformações e das mudanças bruscas. Na verdade, cada século produziu uma característica econômica diferente, e no decorrer desse drama, cada ato tem um nome: ouro ou açúcar, café, borracha ou madeira. Em cada século, em cada meio século, o Brasil revelou sempre uma nova e diferente surpresa quanto a seus abundantes recursos, (p. 80-81).

[...] as grandes transformações na economia brasileira de um produto monopolístico para o outro [...] também se deram na forma de migrações e deslocamentos do povoamento do território 
[...] A era da madeira, do açúcar e do algodão povoou o Nordeste.  [...] Minas Gerais foi povoada pelo ouro. O Rio de Janeiro deve sua grandeza à transferência do rei com sua corte, São Paulo deve sua fantástica ascensão ao império do café, Manaus e Belém devem seu súbito florescimento ao breve ciclo da borracha, e ainda não sabemos onde ficam as cidades que a próxima transformação, a da extração de minérios, a da indústria fará crescer”. (p. 101)

É sempre o sol e a fertilidade do solo que salvam o Brasil. (p. 107)

            Em 1939, aos 19 anos de idade, chegou ao Brasil Vilém Flusser, emigrado de Praga, fugindo da fúria totalitária do Nazismo. Na época em que saiu de seu país, cursava Filosofia, vindo a se tornar nos últimos anos do século XX, um pensador reconhecido pelas antecipações reflexivas que fez a partir dos anos 1960 sobre a grande transformação hoje em andamento na sociedade ocidental provocada pelas mídias eletrônicas. Em 1972, com 52 anos de idade retornou para a Europa, permanecendo na França até o ano de 1991, quando voltou a Praga e lá faleceu nesse mesmo ano.
            Sua vasta produção escrita, feita em geral nos idiomas alemão e português, se distingue pela crítica sobre a relação natureza e cultura. Em sua perspectiva, natureza e cultura formam a base a partir da qual o homem constrói sua existência. Em 1994, uma de suas obras mais importantes Fenomenologia do Brasileiro: em busca de um novo homem, apareceu publicada pela primeira vez e o foi em língua alemã.
            No capítulo final desse livro, após ter examinado diferentes facetas do contexto em que ele ambienta o brasileiro, faz um diagnóstico e prognóstico para o brasileiro naquele momento. Esse olhar dirigido para um passado e para projetar um futuro é feito de um ponto de vista do imigrante que engaja com esse brasileiro, com a seguinte menção:
O Brasil é país miserável, há fome e há doenças, grande parte da população vegeta em primitividade secundária, encontra-se condicionado por natureza pérfida e forças externas. Em tal situação de miséria, porém, existem germes de um projeto brasileiro, o qual, mediante síntese de elementos heterogêneos, visa a uma nova maneira de vida humana, digna, lúdica e criadora. (p. 173).
            Apresento essas duas fontes autorais nesta palestra, sobretudo por sua origem: trata-se de autores que tiveram a língua alemã como pátria linguística e que foram oriundos de territórios que, até 1866, compunham a Confederação Germânica. Ambos, Zweig e Flusser, buscaram enxergar o Brasil com olhar tentativamente isento, tendo em vista sua condição de estrangeiros. Zweig para cá retornou em agosto de 1941, ano de lançamento do livro Brasil, um país do futuro e suicidou-se, juntamente com sua esposa, no início de 1942. Flusser permaneceu aqui por mais de trinta anos e retornou ao continente europeu definitivamente.
            Porém, ambos refletiram o jeito de ser de um povo e, por isso, de um país que não sabe aonde quer chegar, e que tem apenas um projeto embrionário.
            A partir do ano de 1958 o Brasil passou a deter os melhores resultados oferecidos nas disputas dos campeonatos mundiais de futebol, dado pelo número de primeiras colocações. Por força das coincidências históricas agora, em 2014, ao perder na semifinal a chance de chegar ao jogo final de disputa pelo primeiro lugar perdeu a  partida para a equipe alemã.
Caso nesta palestra estivéssemos versando sobre as estratégias e os resultados obtidos pelas equipes na Copa 2014, poderíamos dizer que a seleção brasileira foi sempre muito carente de boas estratégias; faltou-lhe mais claramente a noção de trabalho de equipe, oriunda do planejamento e execução de uma preparação de longo prazo. Em todas as etapas, até à queda para a equipe da Alemanha, foi-se evidenciando uma grande colaboração do improviso, da sorte, do apelo ao valor individual de um ou dois atletas, enfim, não havia mais que um projeto embrionário em torno de uma pretendida conquista do hexacampeonato.
Nesse aspecto, em que se confrontaram a ação planejada da equipe alemã e a ação voluntária da equipe brasileira, ficaram reveladas duas expressões culturais, também reflexivas do ambiente natural. Talvez a distinção mais visivelmente imediata entre os dois grupos é que os alemães, desde há muitas centenas de anos, tenham tido a necessidade de refletir e produzir o pensamento que articula no mundo vivido (SCHUTZ; LUCKMANN, 2003) a visão de longo prazo, pela constância da prática violenta da guerra, da luta pela mais rasa sobrevivência e, talvez, pelo combate consciente à injustiça.
Pode-se supor que essa postura seja uma herança do pensamento grego antigo, em que a reflexão sobre a noção de justiça tenha produzido a idealização da cidade perfeita no Platão de A República. Nessa obra, no diálogo entre Sócrates e Glauco, há a configuração dos guardiões que fariam parte dessa cidade como fonte de segurança; há a explicitação do mito da caverna que reflete o sentido de uma excelência da educação; há a história do guerreiro Er, o armênio, que ressuscita e, então, conta das suas lembranças do que  vivera durante o estado de morte. Essa obra pode sempre ser tomada como uma lição sobre a necessidade da visão idealizada, ou prévia, do que se quer fazer.  De certa forma, o sucesso de um empreendimento tem relação com uma ação antecipadamente planejada.
            Trago para cá a menção a esse evento desportivo recém-ocorrido, porque penso que Elias e Dunning (1992) têm razão ao tecer a analogia do esporte com a violência. Para eles, o processo civilizador vai fazendo o homem superar sua violência natural canalizando-a para substitutos simbólicos: os times são exércitos, o campo é o território de batalha, bandeiras dos clubes são os estandartes das respectivas nações em luta.
Nesse aspecto, cabe considerar que o futebol com as atuais regras de sua prática nascem no ambiente europeu servindo também de canal para a distensão da violência, que passa a ser vivenciada por meios simbólicos e controlados, daí a presença de juiz para equilibrar e conter o excesso de força de um ou outro lado no decorrer do jogo.
Se Elias e Dunning (1992) tiverem aceitáveis razões ao tecer essa analogia entre violência controlada e futebol, vemos que, historicamente, esse esporte no Brasil significa outra analogia. Aqui ainda predomina o sentido lúdico, ou ao menos essa é a vontade mais expressa: o festivo, o congraçamento, o encontro. O futebol – como empresa e negócio carente de planejamento, de ação a ser desenvolvida com a aplicação de estratégia de jogo, de operação que se fundamenta como ação de força – ainda parece estranho ao brasileiro. Este parece ainda se contentar em torcer ou se identificar com clubes falidos e a tolerar dirigentes nesses clubes que, em geral, não são reconhecidos  pela melhor honestidade; e isso significa associar improviso e jeitinho.
 Avalio que trazer para esta palestra esse quadro de um mundo vivido e real  serve para levarmos em conta que à falta de prática mais efetiva de planejamento desportivo se está construindo e aperfeiçoando, pela importação, o esporte como uma prática controlada da violência. O país, quanto ao futebol, vai sendo obrigado a admitir como imponderável a necessidade do planejamento de seu esporte mais tradicional, para poder retomar sua força competitiva e poder aspirar novos títulos mundiais. Torcidas organizadas, como populações inimigas começam a proliferar no Brasil e ações semelhantes se desenrolam em outros espaços de nossa sociedade, pelo gravoso número anual de mortes ou de acidentes de trânsito, clamando por serem resolvidos com boas estratégias de planejamento e ação.
Essa virtual europeização e americanização do futebol brasileiro – que têm essa relação com o desporto como forma de controle da violência física – penetram o Brasil. Seus efeitos vão progressivamente se tornar mais visíveis no país, atingindo a outros setores de modo que se espraiam sobre quase todos os eventos econômicos, políticos, culturais, profissionais e acadêmicos.
            A partir do ano de 1956, como confirmação do esforço no acolhimento de  investidores econômicos europeus e estadunidenses, o Brasil passou a desenvolver a  prática de planejamento econômico nacional, no governo de Juscelino Kubitschek. Essa ação estava associada com o aprofundamento do esforço iniciado de 1930 a 1945 e ampliado de 1951 a 1954 por Getúlio Vargas. Ela visava promover o  desenvolvimento, com um olhar de médio e longo prazo tendo como finalidade dar espaço para a ocupação econômica do ambiente brasileiro pelas indústrias de transformação mais complexas como as montadoras de automóveis. Esse momento, não iria superar a estrutura totalitária do Estado, herdada do período varguista, representada pelo agenciamento de espaços políticos privados da sociedade pelo Estado. Esse agenciamento é o caso tipicamente representado pela presença dos Conselhos Profissionais. Eles foram estabelecidos em uma situação que parece estar em competição com os sindicatos e associações de classe. Assim, as Leis profissionais sancionadas entre os anos das décadas de 1930 a 1970  têm como  características ou inspiração a instalação de domínio similar à de qualquer organização  totalitária inserida em um movimento totalitário, no sentido que esse conceito tem em Hanna Arendt (p. 499-527) quando trata do Nazismo e do Bolchevismo ou em Pascal Ory ao explicar o sentido de totalidade no Fascismo (p. 149).
No ano de 1962, foi sancionada a Lei 4084 pelo Presidente João Goulart. Essa Lei trata do exercício da profissão de Bibliotecário e das suas atribuições. O espírito dessa Lei, assim como o da maior parte das leis de regulamentação profissional à época, promove a  inserção do Estado no seio da categoria profissional, de modo que isso não pareça intromissão desse Estado, mas segurança profissional. O texto da Lei é expressivo nesse sentido. Dos seus 37 artigos, apenas os sete primeiros tratam efetivamente do exercício e atribuições profissionais. Os 29 seguintes tratam dos Conselhos de Biblioteconomia e o 37º  – declara o início da vigência da Lei. Pelo seu teor, se trata de uma Lei que cuida mais de instituir o CFB e os CRBs do que evidenciar as atribuições profissionais  propriamente ditas.
No mesmo ano de 1962, o Conselho Federal de Educação deu por aprovado o primeiro currículo mínimo do Curso de Bacharelado em Biblioteconomia, com caráter determinativo do Estado. Nesse caso, pela via educacional, a escola se submete a uma dominação semelhante àquela exercida pela Lei profissional e é, igual e formalmente, submetida a alguns dos condicionantes da ação do Conselho profissional.
Em 1965, havia pouco mais de um ano da tomada de poder pela ditadura instalada em abril de 1964, o Decreto 56.725, foi publicado dando condições efetivas para que a Lei dos Conselhos de Biblioteconomia adquirisse eficácia.
Virtualmente, a ditadura de 1964 criou todos os obstáculos possíveis para impedir que organizações civis de trabalhadores em vários setores funcionassem: do teatro às oficinas gráficas ou às fábricas diversas, ao movimento sindical, às universidades e instituições educacionais. Ela suspendeu ou alterou legislação, mas no caso da Lei dos Conselhos de Biblioteconomia, ao contrário, garantiu sua eficácia. Certamente, essa Lei e seus beneficiários nominais não foram considerados risco à ditadura.  Parece que a existência dessa Lei não trazia sobressaltos ao poder de então. Tudo indica que seria uma Lei incapaz de perturbar, no seu âmbito, os avanços da modernização conservadora em implantação no país desde o próprio governo Vargas e depois aprofundada por Kubitschek. Perguntas em torno disso poderão ser feitas e explicações mais esclarecedoras certamente surgirão com a abertura dos arquivos do CFB e CRBs.
No ano de 1965, em que foi sancionado o Decreto 56.725, regulamentando a Lei 4.084/62, o relatório de um Grupo de Trabalho envolvendo os governos do Brasil e dos Estados Unidos, publicado pelo CNPq, em 1968, traz uma recomendação a ser analisada com atenção. Ela incita aos responsáveis pela constituição de uma política de  desenvolvimento industrial, que desconheçam, desconsiderem e busquem meios para desfazer a legislação constituída como Lei 4.084 e Decreto 56.725, pois, segundo seu entendimento, essa legislação contribuiria para o atraso no Brasil do setor de informação científica e técnica. Isso, certamente, era uma reação às deliberações dos bibliotecários brasileiros que no CBBD afirmavam que eram hábeis nas tarefas de bibliotecários e, igualmente, nas de documentalistas. Mas essa dupla habilidade não era a realidade conforme a conheciam os especialistas dos Estados Unidos, nem naquele país, nem em outros países europeus. Nesses países, o bibliotecário tem um perfil ocupacional e o documentalista outro, dependendo de formações distintas.
Desde a adoção oficial no Brasil, em 1962, da primeira grade curricular do Curso de Graduação em Biblioteconomia passou a existir uma subordinação da educação bibliotecária aos interesses corporativos e totalitários do Conselho de Biblioteconomia, que se constituiu como a essência da legislação profissional de bibliotecário.
Com a implantação do primeiro currículo mínimo de bacharelado em Biblioteconomia imediatamente duas coisas passaram a ocorrer:
1 – a reiterada demanda de aperfeiçoamento da respectiva grade curricular, com longa discussão a desembocar no segundo currículo mínimo que entrou em execução a partir do ano 1982;
2 – a implantação das recomendações feitas pela Comissão Brasil – EEUU, pela utilização da estrutura do INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO. Esse Instituto, criado em 1954, poderia ser o lugar onde se induziria a formação de especialistas em informação/ documentalistas ou analistas de informação para dar o recomendado suporte ao desenvolvimento da pretendida política industrial brasileira. Nas operações do INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO, estavam envolvidos profissionais bibliotecários, mas sem aparentemente cuidar das causas políticas mais amplas de interesse dos bibliotecários, das causas científicas bibliotecárias e das necessidades populacionais de bibliotecas públicas e de escolas, essas que  constituíam, então, o ambiente bibliotecário predominante. Seu olhar já estava condicionado às ações documentárias, revelado pela designação institucional.
Aquele Grupo de trabalho Brasil – EEUU já referido recomendou que a estrutura do CNPq e do INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO fossem modificadas e dessem espaço à preparação de quadros habilitados e competentes em Informação Científica e Técnica, podendo contar com pessoal de Biblioteconomia e de todos os demais campos que viessem a ser admitidos. Como executor de proposta formativa, o INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO já estava testado pela capacitação que promovia desde a década de 1950 via Curso de Documentação Científica. Por meio de ofertas regulares, a título de especialização, havia o treinamento em técnicas documentárias, tanto de bibliotecários, quanto de economistas, engenheiros e outros profissionais. Antes mesmo de efetivar a sugerida mudança estrutural, o Governo Brasileiro atuou no sentido de que fossem criados no INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO o Curso de Mestrado em Ciência da Informação em 1970 e a Revista Ciência da Informação em 1972.   
As duas coisas há pouco referidas que estavam acontecendo, se intensificaram. De um lado, no CBBD, eram elencadas sugestões de disciplinas de documentação que deveriam  ser acrescentadas ao currículo mínimo do bacharelado em Biblioteconomia; do outro lado, em 1976, o INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO passou a ser o IBICT e o CNPq passou a se denominar  “Desenvolvimento Científico e Tecnológico”. Isso não apenas consolidava a adoção do aconselhamento americano, mas sustentava o interesse governamental no sentido de reforçar o seu discurso e o discurso de setores auxiliares da indústria, centrados na ideia da modernização econômica.
O surgimento do Curso de Mestrado em Ciência da Informação perturbou vivamente o Ensino de graduação em Biblioteconomia.
Em 1967, fora criada a Associação  Brasileira das Escolas de Biblioteconomia e Documentação (ABEBD), estatutária e declaradamente comprometida a não se envolver com questões políticas.
Em 1971, o VI CBBD realizado na cidade de Belo Horizonte, em seu documento final, então aprovado, recomendou (26) “Que a ABEBD, juntamente com as Escolas de Biblioteconomia, promova encontros de Estudantes de Biblioteconomia, para discussão de teses e trabalhos de interesse do Grupo”; e (27) “Que se recomende à Associação Brasileira de Escolas de Biblioteconomia e Documentação a realização do I Congresso Brasileiro de Estudantes de Biblioteconomia em São Carlos, em 1972”.
Virtualmente, a Legislação bibliotecária criou um ambiente de não contraposição dos bibliotecários ao regime ditatorial que dirigia o Brasil e, em contrapartida, o regime era tolerante à legislação bibliotecária, que não criava obstáculo, pois também era capaz de controlar ou isolar o discurso da Escola que, por sua vez, controlaria o discurso estudantil.
Existia, no entanto, movimento de aparente vigor da Escola de Biblioteconomia  quanto ao viés epistemológico. Se havia uma epistême em torno da Ciência da Informação, havia também uma epistême em torno da Biblioteconomia e isso justificaria formar pós-graduados “estrito senso” nessa Ciência, no Brasil, nas Escolas de Biblioteconomia, pois o INSTITUTO BRASILEIRO DE BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO não era Escola de Biblioteconomia. Assim, de 1976 a  1978, as Escolas em Minas Gerais (UFMG), Paraíba (UFPB), Brasília (UNB) e Campinas (PUCCAMP) criaram o Curso de Mestrado em Biblioteconomia. Isso coincidia com o  período de conclusão das discussões visando à reformulação do currículo mínimo vigente desde 1962 que conduzia a elaboração visando à aprovação do segundo currículo mínimo que foi implantado pelas Escolas a partir de 1982.
Apesar desse movimento, a mudança da grade curricular teve caráter cosmético. A própria ABEBD, como Associação das Escolas e dos docentes de Biblioteconomia, teve uma significativa redução de seu alcance não tanto por sua prática, mas pela limitação de seu nome. Uma deliberação que ainda não foi devidamente esclarecida levou a entidade a mudar seu nome em 1979. Essa decisão foi  tomada na 18ª. reunião do seu Conselho Diretor, realizada em Curitiba, no dia 21 de julho e, por ela, passou a existir a Associação Brasileira de Ensino em Biblioteconomia e Documentação (SOUZA, 2006, p. 147). No segundo currículo mínimo, a ênfase no conteúdo técnico não sofreu modificação substantiva senão pelo aumento da carga horária. É que o curso, de trienal, passou a ser quadrienal não significando isso um relevante adensamento na formação que levasse o egresso a conhecer teoricamente as múltiplas dimensões do contexto brasileiro.  
Pode dizer-se que o segundo currículo do Curso de bacharelado em Biblioteconomia, adotado em 1982, estruturalmente continuou a atender à visão totalitária capitaneada pelo pensamento que dá fundamento à Lei 4084/62. O mandato governamental dado à categoria bibliotecária brasileira para a autorregulamentação manteve os bibliotecários neutralizados diante da política governamental de canalizar todos os melhores recursos para a informação científica e técnica e para o apoio à Pós-Graduação. Com isso, foram sufocados ao longo de mais de quatro décadas os mais elementares esforços de fortalecimento das bibliotecas públicas e escolares, base da prática bibliotecária nos países que agem com autonomia política e econômica.
Após a implantação, em 1982, do segundo currículo mínimo do bacharelado em Biblioteconomia e ao longo do seu emprego como política educacional houve coincidentemente a mudança de todos os Cursos de Mestrado em Biblioteconomia para Mestrado em Ciência da Informação. Como desde 1979 já não existia mais movimento de Escolas de Biblioteconomia em defesa da amplitude do campo, mas um movimento reduzido ao Ensino de Biblioteconomia, por um lado, e de outro alguma articulação do Ensino de Pós-Graduação, ocorreu a cisão que levou à criação em 1989 da ANCIB e fomentou com mais força, a partir de então, o esforço de apagamento de uma epistemologia da Ciência Biblioteconômica no Brasil.
Nos vinte anos, que vão de 1982 a 2001, deu-se a mais profunda transformação  no campo das práticas bibliotecárias  no Brasil, marcada por alguns aspectos, como os seguintes:
1 – redução do alcance de sua associação acadêmica – ABEBD –  para somente a temática ensino; desconsiderando, sobretudo, qualquer potencial de pesquisa em Biblioteconomia;
2 – afastamento progressivo da pós-graduação em Ciência da Informação de objetos próprios das práticas Bibliotecárias e constituidores de uma epistemologia própria da Biblioteconomia;
3 – sufocamento da pós-graduação em Biblioteconomia, assimilando as estruturas acadêmicas existentes à Ciência da Informação;
4 – inviabilização da defesa da biblioteca pública e escolar, pela ausência de discurso e argumentos compatíveis com os objetos centralmente produzidos pelas práticas em bibliotecas públicas e escolares;
5 – predominância do discurso do bibliotecário de coleções e de usuários especializados substituindo-se a centralidade da figura do leitor pela figura do usuário da informação;
6 – progressivo apagamento da imagem do bibliotecário pela do cientista da informação.
7 – o notório enfraquecimento das Associações de Bibliotecários.
Nesse ínterim, deu-se o encerramento da ditadura de 1964, com a ocorrência da primeira eleição direta para a escolha de presidente da República, em 1989. No ano de 1988 ficou superado formalmente o estado de exceção política, pois o parlamento federal promulgou a Constituição cidadã. A Carta Maior foi  assim denominada por ter  incorporado vários dispositivos que respondem aos valores de cidadania outorgando-se algum grau de autonomia, liberdade e maior poder de participação da população na realização política. Em consequência, iniciou-se a discussão em torno de uma nova LDB, que viria a ser sancionada em 1996.
Sobre toda a mudança que revolvia o terreno em que caminhava a prática bibliotecária brasileira, destituída de formas de validação da Biblioteconomia como ciência, haveria mais uma mudança – a terceira – sobre o currículo do Curso de bacharelado em Biblioteconomia ofertado no Brasil, que veio a ser implantada a partir do ano 2002. A LDB ajudou a intensificar a discussão que vinha ocorrendo desde o início da implantação do currículo de 1982. Aliado, construindo ou reforçando toda a fragmentação então existente, vê-se na metade da década de 1990 a penetração muito forte de um discurso em que predominava a identificação do bibliotecário com um certo “Moderno Profissional da Informação”. De fato, foi um discurso vazio para o contexto brasileiro. De certa forma, entretanto, teve consequências que aí estão:
1 – destruição da Associação de Ensino de Biblioteconomia – ABEBD – que a partir de 2001 foi substituída pela ABECIN;
2 – caracterização equivocada da categoria bibliotecária na CLASSIFICAÇÃO BRASILEIRA DE OCUPAÇÕES;
3 – definição das Diretrizes Curriculares Nacionais que tentam responder ora ao mercado empregador, por levar em conta a CLASSIFICAÇÃO BRASILEIRA DE OCUPAÇÕES ou a estudos sociais e econômicos; ora tenta dar força a um discurso academicista em torno do eixo habilidades e competências, alimentando o viés gerencialista;
4 – ampliação da dissonância do discurso dos professores dos Cursos de Biblioteconomia, na medida em que esses em número cada vez maior nas equipes dos Departamentos de Biblioteconomia, ou Biblioteconomia e Documentação, ou Ciência da Informação, estão mais preocupados com suas pesquisas de temas da Ciência da Informação;
5 – perda real de articulação orgânica entre Escola de Biblioteconomia e  profissional bibliotecário, inviabilizando a percepção do benefício do controle do exercício profissional por associação classista ou sindical;
6 – perda de sentido da regulamentação profissional por meio da estrutura legal de Conselho de Biblioteconomia, na medida em que não há mais a Escola de Biblioteconomia que estava também no centro da justificativa tácita de criação da Lei 4.084.
Todo esse quadro histórico requer que olhemos para adiante e, para começar, que olhemos a partir da Constituição de 1988. É por essa Lei fundamental da cidadania brasileira que nos últimos anos têm se ampliado o movimento popular, cuja expressão maior e mais recente deu-nos as jornadas de junho de 2013, que se lançaram às ruas pela arguição do direito à mobilidade urbana, por meio de transporte público. Esse esforço de mobilização popular e todas as lutas semelhantes têm por base o artigo 5º. da Carta Maior.
Este mesmo artigo 5º dá também argumentos em prol da regulamentação da profissão sem a necessidade de Conselho Profissional e é essa uma questão fundamental a ser debatida na perspectiva de que desde 2002 vêm sendo discutidos os currículos dos Cursos de Biblioteconomia para a próxima mudança.
É exatamente neste ponto que entendo justificar-se o título-tema que foi adotado para este XXXVII ENEBD, isto é, Responsabilidade política do estudante e o futuro do profissional da informação. Em outros termos, cabe perguntar: que forças os estudantes de hoje querem compor para construir o que será projeto do curso de graduação em Biblioteconomia a ser ofertado a partir do ano 2022? 
Como se sabe o futuro não é um lugar de chegada, mas tão somente a expressão de um acúmulo de esperanças que um grupo é capaz de produzir ao longo do tempo que precede o momento do alcance de uma meta. Se a meta é que haja uma nova formação de bibliotecários a ser iniciada a partir do ano 2022, a discussão já está na ordem do dia. Penso que essa é uma discussão que faz ou deve fazer parte da agenda do estudante de Biblioteconomia de hoje, pois que como profissional estará lá, formado em Biblioteconomia e até sendo professor de Biblioteconomia. A partir daqui exporei uma pequena apreciação com a intenção de provocar novo viés para discussão.
Caso se repita o Ciclo histórico de construção de um novo curso de Biblioteconomia a cada 20 anos, para que se inicie a implantação do próximo há pela frente um caminho de 8 (oito) anos. Isto significa que há para adiante uns 6 (seis) anos de discussão, que hoje está de vento em popa a se considerar a realização do FÓRUM A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA INFORMAÇÃO: DESAFIO CONTEMPORÂNEO que se deu em São Paulo, de 26 a 28 de maio de 2014, já estando anunciado o próximo encontro, na cidade de Belém, com o apoio da UFPA, em 2015.
Mas, nesta discussão que dará um novo curso de bacharelado em  Biblioteconomia a partir de 2022, também deve ser tomada com a atenção devida a Constituição Federal Brasileira (CFB), sob pena de se fazer mais uma mudança que não muda, pois tal proposta, conscientemente ou não, estará submissa ao espírito da Lei 4.084/62 e aos seus fundamentos totalitaristas ou recusará essa submissão. 
O artigo 5º. da CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, que tem por base a Declaração Universal dos Direitos Humanos, dentre os seus 77 incisos traz no de número XIII o seguinte teor: “é livre o Exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Em nenhum de seus demais incisos o artigo 5º. prevê a existência de Conselho Profissional, mas de Associações ou Sindicatos, livremente constituídos, vedadas as de caráter paramilitar. É esse caráter livre e voluntário que está acolhido na CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA atual, significando que a Lei 4.084/62 estaria ultrapassada quanto ao seu sentido político. Primeiro, por estar sustentada no modelo de estado da ditadura dos anos 1930; segundo, por ter sido acolhida pela ditadura de 1964; terceiro, porque obriga a própria categoria bibliotecária a exercer uma função de Estado.
Se fosse possível argumentar que a Lei 4.084/62 dá garantias aos profissionais registrados no Conselho de que esses dispõem de poder para arguir direitos em todas as circunstâncias, por estarem por ela amparados, daria para se ponderar a validade de sua  continuidade como hoje está em função de benefícios que proporcionaria, e isso seria admissível, pois beneficiaria uma categoria trabalhadora especializada. E, politica e economicamente, sabem todos, os trabalhadores, por constituírem a parte mais fraca em uma sociedade capitalista, precisam contar com o maior número possível de instrumentos legais na defesa de seus interesses.  Mas mesmo isso, a Lei 4.084/62 não atende, de acordo com a CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA.
Para exemplificar o que acabei de dizer, não consta da Lei 4.084/62 a defesa do trabalhador, isto é do bibliotecário, por que isto é atribuição específica do sindicato, como previsto no artigo 8º. da CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, especialmente em seus incisos III (ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas) e VI (é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho).
Em reforço a isso, num nível mais profundo do interesse coletivo e, em especial, do bibliotecário, quando possa estar em jogo a própria legislação que lhe interesse, o artigo 103 da CFB prevê como capazes de propor ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade as seguintes instâncias:  I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Entidades de classe são, estritamente, como demonstra Padilha em um estudo realizado em 2013, sobre as organizações do Sistema CONFEA/CREA, as Associações profissionais.
            Finalizando, proponho como contribuição efetiva para a discussão, que sejam  debatidas as condições de permanência da Profissão de Bibliotecário como uma profissão regulamentada, segundo o espírito da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, exponho uma redação muito preliminar de um possível projeto de Lei que atenderia a essa nova perspectiva, isto é, de ter/ser a categoria profissional bibliotecária inserida em uma sociedade livre, conforme é hoje a sociedade brasileira desenhada pela atual Carta Magna. Tenho o entendimento de que isso, se alcançado, mudaria sobremaneira a relação da categoria bibliotecária nacional com a cidadania e, sobretudo, conduziria à construção, a iniciar-se em 2022, de um projeto pedagógico para o bacharelado em Biblioteconomia, orientado pelos princípios livres de uma sociedade cidadã, que estamos a consolidar.
            Dito isto, gostaria de lhes mostrar a minuta de projeto de lei que vem a seguir, submetendo-a à vossa discussão, visando à regulamentação das profissões de bibliotecário e técnico em biblioteca no Brasil. O texto contém apenas nove (9) artigos.

Minuta para discussão

PROJETO DE LEI

Dispõe sobre o exercício das profissões de Bibliotecário e de Técnico em Biblioteca[1], e  determina outras providências

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

CAPÍTULO I
DAS PROFISSÕES DE BIBLIOTECÁRIO E TÉCNICO EM BIBLIOTECA
        Art. 1o O exercício das profissões de Bibliotecário e Técnico em Biblioteca, em todo o território nacional, somente é permitido quando atendidas as qualificações estabelecidas nesta Lei.
        Parágrafo primeiro -  A designação "Bibliotecário", incluída no Quadro das Profissões Liberais, Grupo 19, da Consolidação das Leis do Trabalho, é privativa dos Bacharéis em Biblioteconomia.
        Parágrafo segundo - A designação "Técnico em Biblioteca" é privativa dos portadores de certificados de Técnicos em Biblioteca obtidos no ensino médio.
        Art. 2o O exercício da profissão de Bibliotecário é privativo:
        I - dos portadores de diploma de Bacharel em Biblioteconomia, expedido por instituições de ensino superior oficialmente reconhecidas, registradas nos órgãos competentes, de acordo com a legislação em vigor;
        II - dos portadores de diploma de graduação em Biblioteconomia, conferido por instituições estrangeiras de ensino superior, reconhecidas pelas leis do país de origem, e revalidados no Brasil, de acordo com a legislação vigente;
        III - dos que, embora não habilitados nos termos dos itens anteriores,  tenham sido amparados pela Lei 7.504/86.

        Art. 3º O exercício da profissão de Técnico em Biblioteca é privativo:
I - dos Técnicos em Biblioteca portadores de certificados de conclusão de ensino médio;
            II - dos que, embora não habilitados nos termos do item anterior, contem pelo menos cinco anos ininterruptos de atividade na data de início da vigência desta Lei, no campo profissional de Técnico em Biblioteca;
           
CAPÍTULO II
DAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS
        Art. 4o O exercício das profissões de Bibliotecário e Técnico em Biblioteca, no âmbito das pessoas jurídicas de direito público e privado, é privativo, respectivamente, dos Bacharéis em Biblioteconomia e dos Técnicos em Biblioteca.
        Art 5º São atribuições dos Bacharéis em Biblioteconomia, a organização, direção e execução dos serviços técnicos de repartições públicas federais, estaduais, municipais e autárquicas e empresas particulares concernentes às matérias e atividades seguintes:
        a) o ensino de Biblioteconomia;
        b) a fiscalização de estabelecimentos de ensino de Biblioteconomia, em quaisquer níveis educacionais, reconhecidos, equiparados ou em via de equiparação.
        c) administração e direção de bibliotecas;
        d) a organização e direção dos serviços de documentação.
        e) a execução dos serviços de classificação e catalogação de manuscritos e de livros raros e preciosos, de mapotecas, de publicações oficiais e seriadas, de bibliografia e referência e demais suportes de informação, inclusive em meios eletrônicos e digitais de quaisquer modalidades.
        f) demonstrações práticas e teóricas da técnica biblioteconômica em estabelecimentos federais, estaduais, ou municipais;
        g) padronização dos serviços técnicos de biblioteconomia;
        h) inspeção, sob o ponto de vista de incentivar e orientar os trabalhos de recenseamento, estatística e cadastro das bibliotecas;
        i) publicidade sobre material bibliográfico e atividades da biblioteca;
        j) planejamento de difusão cultural, na parte que se refere a serviços de bibliotecas;
        l) organização de congresso, seminários, concursos e exposições nacionais ou estrangeiras, relativas à Biblioteconomia e Documentação ou representação oficial em tais certames.

Art.6º - São atribuições dos Técnicos em Biblioteca:
        I - recebimento, registro, armazenamento, empréstimo e  controle da circulação do acervo de bibliotecas ou serviços de documentação;
        II – prestação de serviços aos leitores e usuários, fornecendo os documentos ou informações por eles demandadas;
      III – auxílio na execução dos serviços de tratamento e organização do acervo existente;
            IV – execução dos serviços rotineiros relacionados ao  desbastamento da coleção;
         V – conferência e acompanhamento dos procedimentos de aquisição dos materiais que integrarão o acervo da biblioteca.
            VI – execução das operações de processamento eletrônico de dados, incluindo inserção de registros descritivos em sistemas e a reprodução de documentos físicos para o ambiente digital.  
           VII – execução das operações de manutenção e conservação de equipamentos, mobiliários e instalações em bibliotecas e centros de documentação.  
      
CAPÍTULO III
DO REGISTRO DE BIBLIOTECÁRIOS E TÉCNICOS EM BIBLIOTECA
        Art. 7º. O exercício das profissões de Bibliotecário e de Técnico em Biblioteca dependem de registro na Delegacia Regional do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. 

CAPÍTULO IV
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS
Art. 8º. São equivalentes, para todos os efeitos, os diplomas de Bibliotecário, Bacharel em Biblioteconomia e Bacharel em Biblioteconomia e Documentação expedidos, até a data desta Lei, por escolas oficialmente reconhecidas e registradas nos órgãos competentes de acordo com a legislação em vigor.
Art. 9º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as Leis 4.084/62 e 9.674/98.

República Federativa do Brasil, julho de 2014.




REFERÊNCIAS
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BRASIL. Decreto 56.725, de 16 de agosto de 1965. Regulamenta a Lei no 4.084, de 30 de junho de 1962, que dispõe sobre o exercício da profissão de Bibliotecário. Disponível em:
BRASIL. Lei 4.084, de 30 de junho de 1962. Dispõe sôbre a profissão de bibliotecário e regula seu exercício. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1950-1969/L4084.htm. Acesso em 15/07/2014. 
CARTA Aberta - Fórum Formação do Profissional da Informação. Disponível em:  http://www.abrainfo.org.br/noticia/carta-aberta-forum-formacao-do-profissional-da-informacao. Acesso: 15/07/2014.
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ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1985. 432 p.
FERREIRA, Carminda Nogueira de C.; TOLEDO, Maria do Rosário de C. F; FERREIRA, Ruthe Helena C. 1954-1979; jubileu dos Congressos de Biblioteconomia e Documentação: temários; autores; trabalhos apresentados; recomendações. Curitiba, 1979. [s. p.]
FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do brasileiro; em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998. 173 p.
ORY, Pascal. Do fascismo. Mem Martins: Inquérito, 2007. 241 p.
PADILHA, Ênio. O papel das entidades de classe na nova visão do sistema CONFEA/CREA. Disponível em: http://www.confea.org.br/media/EnioPadilha_CNP2013_EntidadesdeClasse.pdf. Acesso: 15/07/2014.   
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2014. 321 p.
SCHUTZ, A.; LUCKMANN, T. Las estructuras del mundo de la vida. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

SOUZA, F. C. O ensino da Biblioteconomia no contexto brasileiro: século XX. 2. ed. rev. Florianópolis: Ed. UFSC, 2009. 189 p.

SOUZA, F. C. Modernização e Biblioteconomia nova no Brasil. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2003. 222 p.
SOUZA, F. C.  O discurso construído no Brasil sobre o ensino de biblioteconomia e ciência da informação (processo sócio-histórico e seus desdobramentos, a partir dos documentos da ABEBD). Florianópolis: UFSC, 2006. (Relatório de Pesquisa). Disponível em: http://eprints.rclis.org/19802/1/O%20DISCURSO%20CONSTRU%C3%8DDO%20NO%20BRASIL%20SOBRE%20%282005-6%29.pdf. Acesso: 15/07/2014.  

ZWEIG. Stefan. Brasil; um país do futuro. Porto Aelgre: L&PM, 2008. 260 p.






[1] http://pronatec.mec.gov.br/cnct/et_apoio_educacional/t_biblioteca.php

 

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